Olhar para uma saca de farinha d’água (ou farinha puba, pubada) é ter certeza de que se está no Norte do país. O preparado feito lá é muito específico: bem granulado e de sabor inconfundível graças à ação da fermentação e ao uso mais corrente da mandioca brava. A raiz, antes de passar por todos os processos parecidos com o da farinha seca, descansa de 1 a 6 dias na água. O tubérculo estufa e fica fácil retirar a casca. Vira puba, palavra que significa podre, fermentado. O sabor é bem ácido e apenas algumas regiões costumar consumi-la desta forma. O mais usual é encontrá-la misturada à farinha seca (30% pubada + 70% seca).
Não se sabe ao certo porque este tipo de variação na produção de farinha aconteceu no Norte. Joselito Motta, engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Mandioca e Fruticultura, levanta uma possibilidade: “Trata-se de uma região cheia de iguarapés. Talvez a disponibilidade de água tenha estimulado esta criação”, diz. Também no Norte, é comum o uso do tipiti comprido, tecnologia indígena feita de guarimã, planta típica da região. É mais usado em produções pequenas. Trata-se de uma “tripa” feita de palha trançada com alças em cada uma das extremidades. Coloca-se a massa de mandioca ali dentro e, ao puxar cada ponta em um sentido, tira-se a manicuera, caldo do qual se produz o tucupi (história de outro post!)
Passada a fase de fermentação, a mandioca puba ou pubada segue para a casa de farinha onde é ralada e prensada. A massa então é peneirada e torrada, e depois peneirada novamente. Para entender este processo todo, acompanhe na galeria abaixo que mostra a produção de farinha pubada de Raimundo Nonato Almeida, o Seo Brejera, que mora e trabalha em propriedade localizada em Altamira (PA):
No Norte, encontram-se farinhas com grãos bem maiores do que no Sul. O que é farinha grossa no Sul certamente é considerada fina no Norte. Os parâmetros são outros. A granulação maior pode ter como explicação o fato de permitir comer a farinha com as mãos, aos punhados. Em Uma viagem feita na terra do Brasil, livro publicado pelo cronista francês Jean de Léry, em 1578, após visita ao Brasil, o autor se surpreende com o comer indígena: “tomam-na [a farinha] com os quatro dedos na vasilha de barro ou em qualquer outro recipiente e a atiram, mesmo de longe, com tal destreza na boca que não perdem um só farelo. E se nós franceses os quiséssemos imitar, não estando com eles acostumados, sujaríamos todo o rosto, ventas, bochechas e barbas.” Assim, comer farinha “seca”, sem nada mais, é um hábito no Norte . Não dá para ir comprar farinha sem experimentar um punhadinho antes de pedir “um litro”, medida padrão no Ver-o-Peso, e na feira da 25 de Março, ambas em Belém.
O paraense até brinca com isso: na 25 eu comprei uma farinha chamada “cream cracker” de Bragança, facinho, facinho de devorar só ela, assim mesmo. Esta cidade, aliás, concentra a maior produção do Pará. É de lá que vem farinhas d’água muito elogiadas por seu sabor levemente ácido e de crocante inconfundível. Outro diferencial é que existem variedades dela embaladas em um paneiro, tipo um cesto feito com folhas de guarimã e tramado com cipó. Um tecnologia indígena para conservar por mais tempo a boa qualidade da farinha.
Outro preparado do Norte bem surpreendente é a farinha produzida na cidade de Uarini. Os grânulos desta versão d’água formam micro esferas muito parecidos com os grãos de sêmola. Há alguns anos, essa semelhança fez com que a chef Mara Salles, do restaurante Tordesilhas (SP), fizesse alguns testes preparando a farinha, também chamada de ovinha, como se fosse cuscuz marroquino. Um jeito diferente de comer a farinha para o nortista.
Diferentemente de outras partes do país onde a farinha é complemento à refeição, no Norte, ela é protagonista. A farinha d’água ocupa espaço no prato feito de polpa de açaí e peixe frito, assim como de acompanhamento da maniçoba, e mesmo de qualquer ensopado que precise ser “aumentado” pra alimentar mais gente. Alimenta o “papa-chibé”, apelido dado ao paraense ribeirinho que costuma misturar água e farinha para fazer mingau que mata a fome.
RECEITA:
A Larissa Januário, do blog Sem Medida, fez farofa delícia com a farinha d´água de Bragança (PA). Clique na foto para ver a receita:
Referência:
LÉRY, Jean de. Visita à terra do Brasil. São Paulo: Martins, Universidade de São Paulo, 1972.
Crédito da imagem de abertura deste post: Mayra Galha
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