Tão misteriosos quanto os processos de confecção das farinhas seca ou d´água são os que originaram os subprodutos da fécula de mandioca. Para se chegar até ela, você viu, já se passou um processo longo. Mas a inventividade brasileira foi adiante para criar mais possibilidades de alimentos a partir do momento que a fécula é separada da manicuera.
Dos blocos ainda úmidos do polvilho surge uma das criações mais apreciadas e mais antigas: a farinha de tapioca. Diferentemente da farinha de mandioca, a de tapioca ainda não tem legislação específica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sobre granulação, cor, ou torra. Daí em cada canto do país a palavra tapioca é usada em situações diversas, às vezes para indicar as farinhas, às vezes para indicar os tipos de comidas feitas a partir dela. Nas embalagens dos produtos vendidos nos mercado é possível encontrar “farinha de tapioca” ou “tapioca”.
Bom, mas vamos às variedades todas! Quando a fécula está bem úmida (cerca de 45% de umidade) é chamada de goma. É com ela que se faz os disquinhos recheados, cozidos na chapa quente, e chamados de tapiocas. Delícias com coco fresco e leite condensado, com queijo e agora com tudo que você quiser. Sim, a tapioca está ganhando o mundo! Está até virando moda também entre aqueles que querem perdem peso e por outros interessados no produto que não tem glúten. Mas afora a moda, tapioca é sinônimo de tradição no Nordeste. As tapioqueiras de Olinda (PE) são conhecidas por sua habilidade em preparar os quitutes há anos, por isso o Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda concedeu à tapioca o título de Patrimônio Imaterial e Cultural da Cidade, em 2006. “Tapioca de goma, chata, meio-grossa, com manteiga e café, primeiro almoço, ceia velha do Brasil antigo e pacato, à luz dos candeeiros de querosene sentimentais”, romanceou Câmara Cascudo na década de 1960.
Mas a goma ainda pode virar outro alimento. Se a farinha continuar por mais tempo na frigideira, vai ressecar, formar placa bem crocante e virar beiju. (Uma pausa: a tapioca recheada também é chama de beiju de tapioca em algum lugares do país.) Daí outro mundo se abre, o dos vários tipos de beiju. Há também registro de beiju feito a partir do carimã, ou seja, na raiz de mandioca ralada. Cascudo enumerou alguns tipos deles, mas as descrições são tão regionais que é preciso fazer um exercício de imaginação: “Dependendo da feitura ou condimentos, o beiju tem longa nomenclatura […]. Beiju-açu o maior, destinado a fazer caxixi; beiju-caua, achatado e largo com ninho dessas abelhas; beiju-cica, seco ao sol, quebradiço, atraente, e às vezes de goma de macaxeira: curandá, com castanhas-do-pará, piladas; beiju-membeca, mole, podendo conter leite de castanhas, requinte posterior, variedade local da tapioca de coco nortista; beiju-peteca, grosso, batido, espesso, grumo áspero, mata-fome porque deve ser mastigado com vagar; biju-quira, com pedaços ou sumo de fruta; beiju-ticanga, seco, de mandioca-puba, levemente amargo; beiju-toteca, meio queimado, dando bebida, e o beiju-turua, de tapioca, delgado.”
A goma também pode ser trabalhada com outras técnicas e gerar diferentes farinhas de tapioca. A mais conhecida e distribuída nos mercados do país é a dura, com grânulos médios. Ela é feita com a goma que primeiro é trabalhada em peneiras, depois vai para o tacho, e é remexida até ressecar e ficar dura, com aspecto de quebrada. Na cozinha nordestina, essa farinha, também chamada só de tapioca, é hidratada para dar origem a receitas de bolos, pudins ou então virar sorvete. Alguns chefs têm usado essa farinha para criar “falsos caviares”. Explico: pratos que simulam ovas de peixe, porque os grãos hidratados parecem ovinhas mesmo.
Já no Pará, mais precisamente na cidade de Santa Isabel do Pará, uma outra farinha de tapioca é a que garante a renda de muitas famílias no distrito de Americano. Foi lá que, na década de 1950, João Miguel, um agricultor de mandioca e que também fabricava farinhas e fécula, desenvolveu a farinha de tapioca com grânulos que parecem isopor e são crocantes. Para fazê-la, a goma bem úmida é passada em uma peneira feita de tecido bem grosso. Aí está o segredo: o movimento de vaivém em círculos com as mãos cria bolinhas. Hoje o processo já foi adaptado pela indústria local, mas muita gente ainda peneira até 400 quilos da farinha nas mãos, conta Rovisal Possidônio do Nascimento, técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Pará em Castanhal (Emater-Castanhal), nascido na cidade e que já trabalhou na região por 15 anos dando apoio à produção justamente desta farinha.
Depois que formou as bolinhas, a farinha vai para o tacho, com temperatura controlada, num processo que se chama “escaldamento”, ou como o povo fala “passar a goma”. Duas pessoas precisam mexer a farinha ao mesmo tempo munidas de uma vassoura feita de cipó titica, encontrado na região. Depois de meia hora, a farinha sai do tacho para esfriar. Daí é peneirada para separar a farinha grossa, da média e da fina. Então começa uma nova fase: a do “espocamento”. A farinha é jogada no tacho com temperatura um pouco mais alta e começa a… pipocar! O tacho precisa até ter uma borda mais alta para não deixar escapar os grãos. Essa farinha é comida pura, em cima da polpa do açaí ou então vira bolos e pudins, também.
Por fim o último subproduto da fécula: o sagu. Ele é trabalhado de forma parecida com a primeira etapa de formação dos grãos da farinha “isoporzinho” de Santa Isabel. A diferença é que eles são bem maiores, e não passarem pelo processo de “espocamento”. Assim viram bolinhas duras, densas. Este produto foi criado por imigrantes europeus no Brasil para substituir o sagu original, que é a seiva de uma palmeira de mesmo nome, nativa do extremo oriente e que foi descoberta pelos ibéricos durante o período das navegações entre os séculos XV e XVI. No Rio Grande do Sul, a receita de sagu feita com vinho e servida com creme é um clássico da cozinha formada por influências italianas e alemãs.
RECEITA:
Larissa Januário, do Sem Medida, traz um sorvete cheio de textura, feito à base de farinha de tapioca “isoporzinho”. Clique na foto para ver a receita:
Referências:
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Global, 2004.
LODY, Raul (Org.). Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia. São Paulo: Editora Senac, 2013.
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adorando essa série sobre a mandioca! qta riqueza!
Que bom, querida! Fico feliz! Aguarda que ainda vem mais coisa bacana. bj, rachel
Raquel adorei a matéria,o modo q vc escreve me encanta e esclarece, e provoca a minha curiosidade.Parabens.O q me ocorreu é que os alimentos deveriam ter seus comentários na embalagem,seria uma forma de conscientizar e valorizar todo processo do alimento.