Ao contrário de todos os ingredientes já publicados aqui no Sacola, o cogumelo Lentinula raphanica ainda está em processo de virar um. Nativo da floresta amazônica, este macrofungo só começa a ser conhecido no restante do país pelo empenho dos entusiastas Noemia Kazue Ishikawa e Felipe Schaedler – ela, pesquisadora e bióloga da Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), e ele, chef do restaurante Banzeiro, de Manaus (AM). Como ainda não tem nome comercial, ambos se referem a ele apenas como raphanica – forma que eu também vou adotar aqui neste post.
A tarefa a que ambos se propuseram foi tentar decifrar o mistério em torno deste cogumelo selvagem, que ainda não se curvou à técnica nenhuma de cultivo. Desde 2013, quando começaram a parceria para estudar e estimular o desenvolvimento do raphanica, eles conseguiram fazer apenas uma coleta de 200g do cogumelo. Também pudera: com a diversidade amazônica, nem bem todas as variedades de fungos – comestíveis ou não – foram descobertas ainda, quiçá a forma de cultivo de apenas um deles. Até hoje foram identificadas 34 espécies de macrofungos na região – número superior as cerca de 20 espécies que atualmente dominam o comércio mundial de cogumelos comestíveis.
O curioso é que o raphanica pode ainda não ser ingrediente para a gente, mas existem registros etnomicológicos datados já das décadas de 1960 e 1970 que indicam o consumo de espécies de cogumelos por grupos indígenas como os Yanomami, Tucano, Nambiquara, Caiabi, Txicão e Txucurramãe. Outros estudos também identificaram que macrofungos são comidos por tribos Uitoto, Muinane e Andoke da Amazônia colombiana, índios Hotï da Amazônia venezuelana, e também por ribeirinhos da Amazônia peruana. Além do raphanica, ainda hoje servem de comida os cogumelos dos gêneros Auricularia, Favolus, Lentinula, Lentinus, Panus e Pleurotus.
É intrigante pensar como os índios conseguem separar os cogumelos que são bons para consumo dos que podem ser venenosos. Para identificar se uma espécie é comestível ou não é preciso observar as características morfológicas, mas só uma análise molecular garantirá com exatidão se o cogumelo está enquadrado na lista de gênero que indiquei acima e que são comestíveis. Foi exatamente a esta análise que Noemia submeteu o cogumelo que cresceu em toras de castanheira empilhadas próximas a sua sala no Inpa e que haviam sido descartadas meses antes, após um experimento mal sucedido de produção de shitake. As amostras foram enviadas para São Paulo e confirmadas pela bióloga Marina Capelari, uma das maiores micologistas do País: sim, eram raphanica!
Antes deste feliz incidente, Noemia já estudava há 23 anos o tema cogumelos comestíveis. Depois de se especializar na produção e cultivo de shitake em Londrina (PR), a pesquisadora iniciou seus estudos sobre os macrofungos amazônicos em 2002. Das 10 espécies identificadas só em Manaus, quais poderiam ser desenvolvidas para se obter coletas frequentes e, consequentemente, uma produção mais controlada? Este era o foco de suas pesquisas. Em 2013, foi Felipe que despertou para o tema após viagem à cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde foi apresentado por um ribeirinho a um cogumelo que o povo dali costumava comer, uma espécie do gênero Auricularia. Levou uma amostra até o Inpa e desde então passaram a trabalhar com a possibilidade de desenvolver uma espécie em escala comercial.
Juntos analisaram as vantagens e desvantagens das 10 espécies. Depois de eliminar: aquelas que existem em outros países; as pertencentes a gêneros com espécies tóxicas e não-tóxicas; aquelas fibrosas e que teriam menor flexibilidade de se trabalhar na cozinha; as resistentes após dias de colheita; e as que mantinham boa forma após desidratadas e que se recompunham bem com a hidratação – xeque-mate! –, a raphanica passou aos testes.
Hoje, bióloga e chef têm parceria com a Fazenda Aruanã, que possui 1,5 milhões de pés de castanheiras, e está localizada em Itacoatiara, a 215 km de Manaus. São nos troncos amontoados das árvores eliminadas no desbaste da propriedade que eles tentam reproduzir um ambiente para o desenvolvimento do raphanica. Um processo delicado e lento que exige paciência. Não há previsão ainda para a próxima coleta. Para Felipe, a ansiedade é por conseguir um dia um lote com uma quantidade superior aos 200g da primeira coleta. Só assim para fazer mais experimento com o raphanica na cozinha. Este cogumelo branco tem sabor e aroma mais delicados que o do shitake, mas tem mais umami, segundo Felipe, que já o preparou na manteiga (papilote), acompanhado por ovos e também na versão desidratada.
Tudo é surpresa neste universo de seres que não se encaixam nem no reino animal, nem no vegetal, ainda mais no Brasil, onde as espécies de macrofungos comestíveis ainda passam por fase de pesquisas. Assim como você, que me lê, faço um exercício para imaginar como deve ser comer um cogumelo amazônico. E é só por todo este empenho da Noemia e do Felipe é que trouxe esta história do primeiro ingrediente do Sacola que eu não comi.
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Raca
Você tem que escrever um livro, eu viajo com suas matérias, vc tem conteúdo como os alimentos, em poucas linhas consegue se aprofundar e nos prender a leitura. Parabéns
Obrigada, querida! bj
Realmente, mais uma aula sobre as nossas coisas. Espero em breve ter mais boas notícias sobre esse cogumelo da Amazônia, vislumbrando já a possibilidade de prová-lo. Afinal, se já nos familiarizamos com outros tipos de cogumelo, por que não experimentarmos o da Amazônia quando for provado que ele é do bem?
Aguardando ansiosamente também! bj