É bonito ver, como eu vi, pescadores puxarem o barco até a ponta da praia, e depois jogarem na areia a rede cheia de tainhas recém-retiradas do mar. Vi a cena na praia do Santinho, em Floripa. Eram peixes grandes, de cabeça chata e corpo prateado. Ainda nem tinha chegado o meio-dia, e rapidamente os moradores já se aproximaram para comprar ali o almoço ou jantar que seria feito a partir daquele peixe fresquíssimo. A carne branca e gorda da tainha está no prato do sulista desde sempre. Em 1557, o cronista alemão Hans Staden esteve no Brasil no Rio de Janeiro e contou em seu livro Duas Viagens ao Brasil como era a prática da pesca indígena desta espécie:
“Estes peixes se chamam em sua língua piratís e em espanhol “lisas” (tainhas). Pescam grande número de peixes com pequenas redes. O fio com que as emalham, obtém-no de folhas longas e pontudas, que chamam tucum. Quando querem pescar com estas redes, juntam-se alguns deles e colocam-se em círculo na água rasa, de modo que a cada um cabe um determinado pedaço da rede. Vão então uns poucos no centro da roda e batem na água. Se algum peixe quer fugir para o fundo, fica preso à rede. (…) Também os atiram com flechas. Têm a vista aguçada. Quando algures vem um peixe à tona, atiram-no, e poucas setas falham. Recolhem grande porção de peixes, torram-nos sobre o fogo, esmagam-nos, fazendo deles farinha, a que chamam piracuí, que secam bem afim de que se conserve por muito tempo. Levam-na para casa e comem-na juntamente com a de mandioca”.
A época da “safra” do peixe motiva hoje as muitas festas da tainha que acontecem salpicadas pelo litoral sul. Daí a oferta deliciosa do peixe assado na folha de bananeira e recheado com pirão de farinha de mandioca, ou das suas moelas fritas ou mesmo as ovas fritas.
Todo ano, entre março e julho, os cardumes fogem das águas frias do extremo sul, especialmente da região da Lagoa dos Patos (RS), e sobem litoral acima em busca do mar com temperaturas mais amenas, até a costa sul fluminense. Os peixes fazem a viagem com o objetivo de se reproduzir e desovar. Os lugares escolhidos são os estuários, braços de mar formados pela desembocadura de rios.
Para garantir a sobrevivência da espécie, o Ibama determina um período de defeso e, fora deste prazo, também impõe regras para extração e limitação de territórios que pescadores artesanais e grandes barcos devem seguir. De 15 de maio até o fim de julho, a pesca de tainha é liberada nas áreas demarcadas.
Assim, só é legalizada a pesca realizada no mar aberto, com distância de um quilômetro dos estuários, por exemplo. Além disso, é preciso fisgar peixes maiores de 35 centímetros – tainhas adultas podem chegar de 55cm a um metro de comprimento. As menores devem ser devolvidas ao mar. Apenas pescadores artesanais legalizados podem trabalhar com a atividade. O mais comum é usarem canoas a remo e rede-de-emalhe para a captura.
Infelizmente a tainha é um peixe superexplorado atualmente, a ponto de correr risco de extinção. Uma explicação é o interesse recente das grandes industrias pesqueiras. Antes considerada um peixe de pouca importância comercial, a tainha virou alternativa rentável diante da diminuição de cardumes de outras espécies. A indústria também passou a visar uma parte do peixe que antes só era vista como um petisco gostoso entre os nativos: a sua ova.
Envoltas por película delicada, as ovas diminutas de tainha são preciosidades na Europa e na Ásia. Após salgadas e desidratadas viram botargas, para os europeus (especialmente os italianos) e karasumi, entre os asiáticos. Este preparado também pode ser feito a partir de ovas de atum e do bacalhau, mas a tradição manda usar especialmente as ovas de tainha. Após retirar a bolsa com as ovas da tainha fêmea, ela é limpa e lavada. Depois passa por um processo de salga e, na sequência, de desidratação.
O preparo deste ingrediente valioso é milenar. Há registros de consumo já pelos egípcios, e depois, expansão do preparado pelo povo fenício. Atualmente é consumido na Sicília e Sardenha, na Itália, Na Ásia, como no Japão e Taiwan, é dado como presente em aniversários e casamentos por simbolizar prosperidade e felicidade.
Hoje o Brasil é grande fornecedor de ovas frescas para as indústrias produtoras da iguaria. De olho no potencial do produto, a Caviar Brasil, empresa localizada em Itajaí (SC), desde 2010 faz o beneficiamento do produto, ou seja, produz a ova salgada e desidratada aqui no país seguindo técnica artesanal italiana. Com o rótulo Bottarga Gold, a empresa inclusive vende a botarga envolta por cera de abelhas – uma forma de conservá-la que é das mais antigas registradas na história. “É exatamente o mesmo processo [de produção italiana]. O que pode mudar é o sabor em virtude da região onde é pescada a tainha”, conta Bernardo Leandro Fuck um dos sócios da empresa.
Miúdos ou partes internas de peixes e outros bichos não costumam despertar o desejo de muitas pessoas, mas a botarga é um alimento especial. Seu processamento transforma a tira de ovas em um patê mais consistente e bem untuoso. Fatiado finamente e servido apenas com pão e manteiga é desses presentes deixados pelos nossos antepassados que temos de agradecer até nossos últimos dias.
Referências:
STADEN, H. 1974. Duas viagens ao Brasil. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. p. 218.
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