“Quando você aprendeu a fazer queijo?” Diante da pergunta, vários produtores, homens e mulheres, demoraram a responder. Olhavam ao léu numa tentativa de ativar a memória, e comumente, a resposta era a mesma: “Não lembro”. Nas zonas rurais de Minas Gerais, aprende-se a fazer queijo desde tão cedo que ninguém tem muita clareza de quando a tradição foi passada. A impressão que dá é que, em vários lugares, já se nasce sabendo trabalhar a massa branca de leite cru recém-coalhado. Está no DNA do povo da roça de Minas, só pode.
Produzir queijo é uma herança portuguesa de mais de 200 anos que muitas famílias do estado ainda preservam com receita e modo de preparo ancestrais, quase inalterados ainda que passados tantos anos – e mesmo com as pressões por processos mais tecnológicos de produção. É por ter reconhecida esta importância cultural e potencial socioeconômico, que Minas Gerais têm demarcação específica de regiões produtoras artesanais, o que valoriza os queijos produzidos por sua identidade própria, única no Brasil. São elas: Araxá, Serra do Salitre, Serra da Canastra, Cerrado, Serro, Campo de Vertentes e – a recém-determinada – Triângulo Mineiro. Essa diversidade de produções e de queijos pouco conhecida por quem não é mineiro – como eu, no caso – foi o gatilho para a visita aos produtores e a pesquisa sobre esses preparados tão cheios de história.
A região de Araxá, que inclui 11 cidades com produtores ativos, é uma das que ainda preserva essa tradição rural. Pelas estradas de terra, chega-se a propriedades entre vales e montanhas onde está a produção de queijo artesanal atualmente. Em áreas mais planas, mais urbanas, a produção de queijo foi abocanhada pela indústria e se curvou à pasteurização e à tecnologia, para criação de um produto padronizado. É preciso viajar para conhecer a produção do queijo desta região, conhecido pelo sabor mais suave e de textura mais delicada, gerado pela combinação de fatores diversos, da altitude, do tipo de solo, das pastagens. Características múltiplas que só podem identificar o queijo da região de Araxá.
Foi na cidade de Sacramento (a 20 km de Araxá), na Fazenda Califórnia, que acompanhei pela primeira vez, e de perto, a produção do queijo legítimo de Araxá. Enquanto espremia a bola de massa de queijo, Marly Cristina Leite me explicava pacientemente cada etapa do processo (veja a galeria de fotos aí embaixo!). Assim como em muitas das regiões produtoras, também em Araxá o trabalho de fazer o queijo é essencialmente feminino. Dizem que a mão quente ajuda a formar a peça e a manter a temperatura do leite recém-ordenhado. Claro que a delicadeza e paciência da mulherada também conta muito.
Enquanto o marido Joel Urias Leite cuida da venda dos produtos e do rebanho de 172 cabeças, das quais 73 vacas estavam produzindo leite na ocasião – esse número varia –, Marly cuida da produção diária das cerca de 100 peças de queijos. Só aos fins de semana, quando a filha Ravana, que atualmente estuda zootecnia e mora em Araxá, está na propriedade dos pais, Marly tem ajuda na produção. Durante a semana, é só a Marly que toca a produção inteira.
O trabalho puxado é dividido em duas partes do dia: primeiro de manhã bem cedo, lá pelas 6h, após a primeira ordenha, e, depois, após o almoço, com a segunda ordenha. Toda a tarefa toma mais da metade do dia da Marly, que depois toca o trabalho doméstico. Fazer queijo, então, exige compromisso, que é tão sério que as saídas para a cidade ou outros afazeres fora da fazenda precisam ser calculados. Afinal, quem então faria o queijo?
E não dá para que outras pessoas fiquem entrando e saindo da produção da queijaria. Antes mesmo de existirem informações científicas sobre os microorganismos que vivem nestes ambientes – e que formam o queijo, afinal –, o mineiro da roça já sabia: se muda a mão, muda o queijo.
É este pacto diário com essa produção que justifica o fato de o oficio ser passado de geração em geração, ou então, ao contrário, acabar de vez, já que hoje vender leite pode ser mais lucrativo que fazer queijo.
Alexandre Honorato é a terceira geração a lidar com o alimento. Ele está à frente, junto da mulher Berenice, de queijaria localizada na cidade de Araxá, na Fazenda Só-Nata, que produz entre 100 e 120 queijos por dia, a partir do leite das 60 vacas lactantes de um rebanho de 125 cabeças. O nome da fazenda é uma homenagem ao avô, que na década de 1960 tinha o entreposto Só-Nata, que vendia queijo e outros alimentos na cidade de Araxá.
Depois de sair do campo e viver na cidade, Honorato voltou para o campo e reativou sua produção de queijo em 2005. De lá para cá, foi o primeiro em Minas a conseguir o selo do SISBI/POA (Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal), certificação federal que libera a venda do seu produto para todo o Brasil. Os queijos moldados pela Berenice e uma ajudante são peças de 1 kg, e mais altas, caraterística bem típica de Araxá.
Seja vendendo um queijo menos curado (o do tipo frescal), que é a preferência mineira, ou outros acima dos 20 dias de maturação, 90% da produção de Honorato fica dentro de Araxá. Só alguns poucos vão para outros estados. A justificativa não é nenhuma estratégia comercial. É orgulho, mesmo: “O queijo bom fica aqui em Minas”.
RECEITA:
Foi com o queijo de Honorato que a Larissa Januário, do blog Sem Medida, criou esta receita exclusiva: nhoque de batata doce com fonduta de queijo de Araxá e tomate concassé. Clica na foto para saber como fazer!
VÍDEO:
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Serviço:
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Que pena que os melhores queijos de Minas fiquem por lá mesmo, segundo um dos produtores. Ainda bem que já estive por lá e os saboreei. Delícia!