Você percebe que está próximo à Serra da Canastra quando a estrada vira um ziguezague com subidas e descidas. Pela janela, a paisagem é intercalada por vegetação retorcida típica de cerrado nas áreas mais planas, e mais abundantes, com árvores mais altas, perto de fendas entre morros, local onde nascem ou passam cursos d’água. No horizonte, é possível reconhecer a Serra que batiza aquelas bandas: um monte em forma de canastra, ou seja, de baú.
É ali que está guardada uma das preciosidades da região: o queijo artesanal de leite cru que hoje dá tanta fama ao local, e se tornou o queijo mineiro mais conhecido fora de estado. A produção é vestígio tão importante da cultura regional que o seu modo de preparo foi registrado no Livro dos Saberes, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2008. Hoje cerca de 1.800 famílias de sete cidades da região vivem da lida diária do queijo da Canastra (de 1kg) ou do Canastrão ou Canastra Real (de 5 kg).
De casca bem amarelada, a peça costuma ser mais baixa se comparada a do queijo de Araxá. Já o sabor tem um toque mais picante, que é potencializado pela maturação mais longa, de mais de 20 dias. Embora grande parte dos produtores certificados faça queijo com maturação de até cerca de dez dias para venda no mercado local, a legislação atual prevê uma cura entre 17 e 22 dias para venda fora do estado de Minas. Apesar de ser uma obrigação que obedece norma sanitária, a legislação resgata um tipo de queijo que era mais comum na época dos tropeiros: bem mais amarelado por conta da cura estendida por até 30, 40, 60 dias – ou quantos dias fosse necessário ficar no lombo do cavalo. O resultado dessa espera é um produto que fisga quem gosta de queijo na primeira mordida: ele é intenso, de sabor profundo, e com o toque picante que já mencionei.
O curioso é que tanto o queijo de Araxá quanto o da Canastra (e também o do Cerrado, como você vai ler no próximo post desta série), usam a mesma receita e modo de preparo muito parecidos. É após dar uma mordida em um e depois no outro que fica claro o quanto os queijos de cada região produtora, de fato, são diferentes, resultados de combinações específicas de solo + vegetação + clima + ambiente microbiano único da região. E olha que ainda existem também diferenças entre queijos de produtores da mesma localidade (!).
“Queijo [produzido na Canastra] é quase tudo igual, mas, assim…mas não é quase igual, não. Você sente que alguns têm mais acidez que outros”. A fala contraditória de Nereu Ramos Martins, produtor de Tapiraí (MG), é um misto de orgulho de sua produção, e de conhecimento de causa. É sua mulher, Luzia, que comanda a fabricação diária de 30 queijos, feitos a partir da ordenha do rebanho de 30 vacas (batizadas, como é de costume, com nomes muito engraçados: Gemada, Moela, Querida, Madrugada, Fartura e Moeda, por exemplo).
Os queijos premiados de Nereu e Luzia são vendidos parte diretamente em mercados da região e parte via Centro de Qualidade do Queijo Minas Artesanal, em Medeiros (MG). Fui até lá e deu para notar ainda mais as diferenças de formas, cor e, certamente, sabor dos queijos locais. A sala de maturação enorme acomoda centenas de queijos de sete produtores locais, certificados pelo Ima (Instituto Mineiro de Agropecuária), e que têm a produção acompanhada pela Emater-MG.
No Centro, assim que os queijos novos chegam – ainda frescos, maturados até uns oito dias nas propriedades –, são lavados, e lixados (ou “grosados”, como o povo de lá diz) para depois serem curados até o tempo indicado pela legislação. Com embalagem padronizada, são vendidos para dentro e fora do estado já que o Centro possui a certificação do SISBI (lembra?). Na etiqueta do queijo há a indicação do nome do produtor da peça.
Foi lá que ouvi umas das comparações mais engraçadas sobre a produção artesanal: “Queijo é que nem menino pequeno: dá trabalho!”. A fala é da Célia, técnica que trabalha no local, ao se referir justamente à etapa de maturação do queijo. Os queijos limpos e lixados vão para prateleiras de madeira para curar, em sala que deve ter temperatura e umidade controladas. Daí começa a rotina: é preciso virar o queijo todo santo dia, além de lavá-lo com esponja e água corrente. A explicação é que o queijo é um alimento “vivo”, com ambiente microbiano que precisa de cuidados. Assim, ao virá-lo, os dois lados “respiram”, e, ao lavá-lo, elimina-se a gordura que se forma na superfície que pode atrair bactérias indesejadas.
Além de ser vivo, o queijo, em algumas falas, também parece gente, e desperta até sentimentos: “Eu tenho ciúmes dos meus queijos”. A declaração é de Valdete, mulher de José Baltazar da Silva, mais conhecido como seu Zé Mário. Junto da família, eles tocam queijaria em São Roque de Minas (MG) com produção miúda – cerca de 8 peças por dia –, mas bastante disputada graças à produção zelosa que já garantiu vários prêmios de qualidade na região e no estado. A divisão de tarefas é parecida com a que vi em Araxá: enquanto Zé Mário cuida do rebanho de 24 vacas – sendo 10 em lactação quando visitei -, a Valdete é responsável pela produção de queijos. Só ela entra na queijaria: “Eu mesmo só entro aí umas quatro vezes por ano”, diz Zé Mário. Tudo para manter o equilíbrio microbiano do local.
Tanto Valdete quanto Zé Mário cresceram fazendo queijo. Mas eles não se lembram de uma coisa: há mais de cem anos, o coalho usado na produção regional ainda não era industrializado. O comum na região era criar um coalho natural a partir do estômago de espécies locais de tatu. Era assim: o bucho era lavado e depois preenchido por sal. Depois, recebia uma “embalagem” de palha de milho e era pendurado em cima do fogão à lenha para secar. Ali ficava intocado por uns seis meses. Daí a trouxa era aberta e uma colher do coalho era misturada à água e, depois, ao leite para começar a fabricação de queijos. Há também registros de uso posterior de estômago de outros animais, como porco ou boi. Mas este coalho não existe mais hoje em dia por ali, substituído já há muitos anos pela versão industrializada.
O que também mudou muito foi a estrutura das queijarias. Por questões sanitárias da nova legislação estadual, as salas feitas de madeira tiveram de ser substituídas por alvenaria. O acabamento em azulejos também é uma das exigências.
Ainda que estas mudanças todas tenham sido feitas, o produto feito na Serra da Canastra ainda é baseado em modo de fazer antigo, e gera um queijo – mais um em Minas – com sabor único. Mas cuidado na hora de comprar seu queijo: tem vendedor que anuncia “Queijo Canastra de Araxá, feito em Patrocínio”. Ou seja, impossível saber a origem de fato, se é da Canastra, ou de Araxá… Queijo da Canastra só pode ter sido produzido nas cidades que formam a microrregião, que são: Bambuí, Delfinópolis, Medeiros, Piumhi, São Roque de Minas, Tapiraí e Vargem Bonita. Busque saber qual a cidade em que foi produzida. Isso vale para qualquer queijo mineiro.
RECEITA
Para saudar esta belezura que é o queijo da Serra da Canastra, a Larissa Januário, do Blog Sem Medida, fez receita de bolacha amanteigada que exalta tudo de melhor que este queijo tem. Clica na foto para saber como fazer:
VÍDEO:
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Serviço:
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