Doces conventuais podem ser cheios de sentimentos… e também cheios de segundas intenções! Esse tema está na matéria de outubro da parceria do Sacola com a Revista Menu. Conheça um pouco mais sobre as produções açucaradas nacionais que, de herança dos conventos portugueses, ganharam adaptações pra lá de sensuais nas mãos das freiras brasileiras.
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Boa leitura!
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Doces sentimentais
Entre compotas de cajus, cocadas, pães de ló, biscoitos de polvilho, e tantos outros doces e bolachas que figuraram nos primeiros receituários brasileiros datados do século XVI, chama a atenção uma categoria de quitutes que fugiram da convenção de nomes restritos à descrição dos ingredientes que os compunham. Parte deles se prestava a homenagens, recebendo nomes de santos, de vilas e de cidades, e também sobrenomes de famílias importantes da sociedade brasileira.
Mas, além desses, havia um outro grupo bem peculiar, criado em conventos de Portugal e, posteriormente, reproduzidos em suas colônias, como o Brasil. Eram doces e bolachas concebidos dentro de conservatórios majoritariamente femininos que “sussurravam nomes que eram confissões, apelos, críticas, murmúrios de queixas”, como descreveu Câmara Cascudo, em seu livro História da Alimentação no Brasil (1983). Na lista do folclorista, alguns deles: “bolinhos de amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, abraços, caladinhos, saudades”.
Eram doces que pareciam extravasar as opressões do claustro e deixar à flor da pele sentimentos e comportamentos criticados pela Igreja Católica, especialmente entre os membros do clero. Em Casa-Grande & Senzala (1933), o antropólogo Gilberto Freyre opinou sobre quão lasciva podia ser encarada essa produção de doces: “Na culinária colonial brasileira surpreendem-se os estímulos ao amor e à fecundidade. Mesmo nos nomes de doces e bolos de convento, fabricados por mãos seráficas, de freiras, sente-se às vezes a intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confundir-se com o místico: suspiros-de-freira, toucinho-do-céu, barriga-de-freira, manjar-do-céu, papos-de-anjo. Eram os bolos e doces porque suspiravam os freiráticos à portaria dos conventos. Não podendo entregar-se em carne a todos os seus adoradores, muitas freiras davam-se a eles nos bolos e caramelos. Estes adquiriam uma espécie de simbolismo sexual. ”
O crítico literário Afrânio Peixoto, citado por Freyre, também registrou em seus estudos os doces com nomes recheados de segundas intenções: beijinhos, desmamados, levanta-velho, língua-de-moça, casadinhos, mimos-de-amor: “Não foram outros como nós, gozadores, que lhes demos [aos doces] tais apelidos, mas as suas autoras, as respeitáveis abadessas e freiras dos conventos portugueses nos quais a ocupação, mais do que o serviço divino, era a fábrica dessas iguarias”, afirmou.
Foi a partir do século XVII que os conventos de Portugal despontaram como grandes centros de confecções açucaradas, inspirados por receitas das cozinhas palacianas para agradar comitivas reais que se hospedavam nesses ambientes religiosos. No mesmo período, expandia-se a produção de doces feitos a partir da grande oferta de açúcar, cultivado pelos portugueses inicialmente na Ilha da Madeira e, depois, nas colônias das ilhas atlânticas e no Nordeste do Brasil.
As receitas dos doces com nomes sentimentais e voluptuosos, e outros de origem conventual portuguesa, foram trazidas para o Brasil na mala das clarissas enviadas de Lisboa para fundar o Convento do Desterro, na Bahia, – o primeiro para mulheres criado no país, no final do século XVII, pontua a historiadora Leila Mezan Algranti. “Talvez, quem sabe, tenham sido depois transmitidas [as receitas] ao Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro, quando as freiras do Desterro se deslocaram para fundar esse convento carioca. (…) O que é certo, contudo, é que as religiosas e reclusas da América eram também exímias doceiras (…)”, afirma em seu artigo “Os doces na culinária luso-brasileira: da cozinha dos conventos à cozinha da casa brasileira – séculos XVII a XIX” (2005).
A historiadora lembra que, aqui no Brasil, dada a escassez de produtos similares aos europeus, como farinha de trigo e amêndoas, “desenvolveu-se uma doçaria doméstica com contornos menos elaborados e à base de produtos regionais, a qual marcou de forma mais intensa a doçaria ‘brasileira’ do que os chamados no Brasil de hoje doces portugueses ou de ovos (‘doces de freiras’, em Portugal)”, afirma.
Um exemplo dessas adaptações e modificações está em uma receita de suspiro que consta em O Doceiro Nacional (1895), um dos primeiros livros de receitas publicados no Brasil. Recomenda-se o uso de “coco da Bahia” ralado, tão presente na realidade nacional. Há ainda, no mesmo livro, o registro da influência brasileira em variações dos nomes de receitas originais, como os Suspiros à Mineira. Também mudaram as composições: os melindres citados d’O Doceiro Nacional levam farinha e manteiga, que outra receita com o mesmo nome, registrada no primeiro livro português de culinária, o Arte de Cozinha (1680), não menciona.
Embora as freiras quituteiras continuassem a produzir por aqui os doces “sentimentais” dos conventos, foram as mãos das donas de casa, sinhás, e negras à beira do fogão que moldaram os quitutes tal qual ficaram conhecidos e popularizados no país – ainda que cada receita adaptada fosse mantida em segredo, como bem valioso de cada família, gerando diversas versões do mesmo doce.
No livro Delícias das Sinhás – História e receitas culinárias da segunda metade do século XIX e início do século XX (2007), o estudo em torno de livros de receitas de autoria de duas sinhás moradoras de Campinas (SP), escritos entre 1863 e 1940, revela outras adaptações para docinhos e bolachas, que reproduziram nomes de origens conventuais, ou até se inspiraram neles: meiguices da sinhá, beijinhos de moças corriqueiras, sonhos em calda, suspiro do coração, esquecidos, entre outros. “Muitos doces eram preparados para serem oferecidos a amigos e parentes como presente. O que significava afagar alguém, consistindo numa expressão simbólica de sentimentos. Um exemplo é a Cocada seca para Mimo”, conta Eliane Morelli, historiadora da Unicamp e integrante da equipe de organizadores do livro.
Ainda que já enraizadas na doçaria brasileira, as tradições portuguesas começaram a perder espaço na confeitaria nacional a partir do século XIX. A doçaria francesa, considerada mais refinada e elegante pela Corte e pelas elites dos grandes centros urbanos, relegou os quitutes de origem portuguesa aos rincões do país, onde ainda permaneceram, mas que também, com o tempo, foram sumindo do cotidiano – especialmente os docinhos e bolachas com nomes “dramáticos”.
Desde 2010, a goiana Adriana Lira deu início ao trabalho de resgatar e sofisticar receitas antigas em sua confeitaria, a Dona Doceira. Entre as rosas de fitas de coco e os pastelinhos de Goyaz, também figuram suspiros de formas variadas feitos a partir de receitas que misturam o conhecimento de livros antigos da família e também de criações de Adriana, como o suspiro orgânico de goiaba. “Toda doceira goiana se considera dona de um patrimônio. Daí terem tantas receitas secretas de doces”, diz.
A doceira estuda lançar em breve uma linha de biscoitos “esquecidos”, como diz. Um que está gravado na sua memória de infância é a raiva, tipo de sequilho que aprendeu a com a tia bisavó paraibana Ana Augusta Lira. Para entrar no clima sentimental dessa reportagem, confira as receitas do suspiro orgânico de goiaba e da raiva no fim dessa edição.
Edição outubro – Revista Menu