A massa adoçada que preserva o frescor da fruta madura e o picante dos queijos maturados formam combinação tradicional e muito antiga na alimentação brasileira. Não há clareza sobre quando a combinação goiabada com queijo passou a ser chamada de Romeu e Julieta, em alusão ao casal da obra universal do dramaturgo inglês William Shakespeare. Mas registros feitos por viajantes-cronistas de séculos passados dão pistas sobre este hábito tão nosso, já de tempos coloniais, mas que curiosamente causava espanto aos escritores europeus (mesmo entre os conterrâneos de Shakespeare):
“(…) É muito original o costume brasileiro de comer queijo com compotas de frutas uma combinação a que nunca me pude habituar (…)”, anotou o escritor alemão Oscar Canstatt, em 1868, no seu livro Terra e a Gente. “(…) A canjica é temperada com rapadura, e acompanhada de marmelada e goiabada. As duas últimas são apresentadas em caixas de pau ou latas rasas. São as preferidas de todos, supondo-se que facilitam a digestão, e acompanhadas por queijo salgado, do mesmo modo que em Yorkshire se serve queijo junto do pudim. (…)”, anotou Richard Burton no livro Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, publicado em 1869.
Para a pesquisadora Claude Guy Papavero, que estuda temas ligados à antropologia da alimentação, a última citação dá pistas de vestígios de uma relação com a teoria humoral, que vigorou entre o século 4 a.C. e o século 17, e que atrelava o bem-estar ao equilíbrio entre quatro humores (fluidos corporais). O açúcar era elemento importante para equilibrar temperamentos frios. Assim, o país reconhecido pela liderança na produção mundial de cana-de-açúcar, entre os séculos 16 e 18, incorporou e adaptou receitas dos doces de barra e compotas trazidas pelos portugueses, com consumo que podia ser justificado também para a manutenção da saúde (“facilitam a digestão”).
Marmeladas
Nas adaptações das receitas em pasta, a receita que antecedeu a goiabada foi a marmelada. Os pés de marmelos foram aclimatados já no Brasil Colônia. No livro Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583-1593), Fernão Cardim anota: “No Rio de Janeiro, e São Vicente, e no campo de Piratininga se dão muitos marmelos […] e aqui se fazem muitas marmeladas, e cedo se escusarão as da Ilha da Madeira.” Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado Descritivo do Brasil (1587) também descreveu: “[…] e os marmelos são tantos que os fazem de conserva, e tanta marmelada que a levam a vender por as outras capitanias.”
Em Dicionário do Doceiro Brasileiro, primeiro livro publicado no país sobre doçaria, em 1892, que trazia as receitas circulantes à época, mas ainda com muitas dos primeiros livros de gastronomia da humanidade, como o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, datado do século 16, há registros do como fazer marmeladas e goiabadas.
A goiaba também era transformada em pasta e ao longo dos séculos – por hábito e também pela ocorrência de entomospirose, doença causada por fungo, que dizimou milhares de pés de marmelo – substituiu as dos marmelos, juntamente com a figada, mangada e pessegada. Aliás, ainda no Dicionário, é possível perceber que, com o tempo, o termo “marmelada” é aplicado para indicar o formato de doce em pasta, visto que são listadas receitas de marmelada de damascos, de maçãs, de pêssegos.
Mas e o queijo comido junto? Como observou Burton na citação indicada acima, doce e salgado faziam par nos finais das refeições. Em comum, queijo curado e doce em pasta, ambos produtos criados para resistirem, durarem por mais tempo, em um momento da história em que sal e açúcar assumiam papéis de elementos conservadores de alimentos, mais do que elementos realçadores de sabor.
Produtos que andavam juntos no lombo de cavalos e mulas cruzando sertões e garantindo o sustento do corpo: “O mais importante artigo de comércio, que os mineiros para aqui trazem, é algodão bruto; mas, além disso […] também queijos, toucinhos e tijolos de marmelada são conduzidos nestas estradas pelas tropas de Minas Gerais.”, consta no livro Viagem pelo Brasil (1817-1818), de autoria de Spix e Martius.
Patrimônio Imaterial
“Não há, disseram-me, uma pessoa em São Bartolomeu que não tenha um quintal plantado de marmeleiros e macieiras; os habitantes fazem com os marmelos um doce muito afamado que é posto em caixas quadradas feitas com uma madeira branca e leve chamada ‘caixeta’ […] e não somente vendem essas caixas em Vila Rica e seus arredores, mas ainda fazem remessas ao Rio de Janeiro. Comi desses doces; eles têm pouca transparência, porque não há o cuidado de eliminar as sementes e o miolo; mas têm gosto quase tão agradável quanto as famosas marmeladas de Orleans.” Auguste de Saint-Hilaire, em seu Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil (1817-1818), exaltou a produção da marmelada neste distrito de Ouro Preto (MG) que, até hoje, faz doces em pastas a partir do empenho dos doceiros autônomos, como Seu Vicente e Dona Serma Tijolo. A produção pequena de goiabada e doce de leite e outros, feita no tacho de cobre, assim como a dos demais doceiros do distrito, foi o primeiro bem cultural registrado como Patrimônio Imaterial em Ouro Preto, em 2008.
Depois foi a vez de Ponte Nova e Barão dos Cocais, também em Minas Gerais, obterem reconhecimento similar para o conhecimento passado a gerações na produção dos doces pastosos, feitos no tacho e com fogão à lenha. Nessas cidades e nas demais das redondezas, a produção de goiabada cascão inclui a receita com pedaços de cascas da fruta incorporadas na massa peneirada e acrescida de açúcar. Em São Bartolomeu, corre a história de que o doce surgiu porque a doceira usou uma peneira de taquara defeituosa e que, assim, pedaços da casca escaparam para o doce.
Fontes:
BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho (1869). p. 102
CANSTATT, Oscar. Brasil, a Terra e a Gente (1868). Rio de Janeiro, Irmãos Pengetti Editores, 1954. p. 318
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583-1593). 2º edição, São Paulo, Biblioteca Pedagógica Brasileira/ Companhia Editora Brasileira, 1939. p. 314
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil (1817-1818). São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia Editora, 1974. p. 83
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil (1587). São Paulo, EDUSP/ Companhia Editorial Nacional, 1971. p. 115