Especial Milho

O milho sempre assumiu grande importância simbólica para povos originais nas Américas. Nos Andes e América do Norte, ocupa desde sempre espaços de simbologias, rituais e de sustento. Nas terras baixas tropicais, incluído o Brasil, mais especialmente o centro até sul do país, o grão tem posição nas cerimônias e alimentação de povos como guaranis, caingangues, caiapós, entre outros.

Assim como a mandioca, o milho teve seus subprodutos incluídos na comida de sustento, que aplacava os momentos de carestia, e tida como a “comida possível”, na avaliação dos europeus que se instalavam por aqui a partir do período colonial. “Possível” num momento histórico de acomodações de hábitos alimentares numa terra “nova” para os habitantes vindos do Velho Mundo.

O milho era planta de cultivo fácil por ser nativa e rústica. Acompanhava o nomadismo de grupos tupi-guaranis em rotas que iam dos interiores ao litoral, posicionando-o assim como alimento relevante para a manutenção da vida indígena e branca, e que adaptou o modo de viver especialmente no centro do país. “Ao se instalarem nas terras indígenas da região do planalto, vila de Piratininga e, posteriormente, Minas Gerais, os colonizadores que tinham indígenas em condição de escravidão acabaram recebendo ampla influência desses conhecimentos ecológicos e culinários. Dessa forma, a presença do milho na alimentação dos paulistas desde o século 17 deve-se, em parte, ao apresamento da população tupi-guarani a partir do século 16 e o seu transplante para o planalto paulista”, alerta Paula Pinto e Silva, em seu livro “Farinha, feijão e carne- seca – Um tripé culinário no Brasil colonial”.

A associação do grão às culturas indígenas, no entanto, o marcou como “comida de bugre”, “pouco sadia”, “comida de pobre”, muito embora estivesse o milho presente da primeira à última refeição dos tempos mais remotos até hoje. Apesar de não ter motivado nenhum ciclo econômico importante ao longo da história, como o café e a cana-de-açúcar, movimentava a economia regional e nacional, na mesma medida em que, até contraditoriamente, o consumo de milho, especialmente na forma de farinha, avançava na Península Ibérica a partir do século 17.

Ao contrário da mandioca, escolhida ao longo dos tempos como ingrediente de distinção do Brasil – com pouca alteração nos modos de consumo e de preparo dos seus subprodutos -, o milho é um dos ingredientes nativos que mais acumulou sobreposições culturais quando o tema é a culinária. Talvez pela sua presença cotidiana importante, mas invisível economicamente, foi daqueles o que mais absorveu influências europeias e africanas especialmente nos preparados, nas receitas. A canjica, por sinal, mostra muitas dessas contribuições pelos registros de viajantes: ora descrita como prato de grãos pilados e cozidos em água com nenhum sal, ora enriquecida com mais ingredientes, especialmente o açúcar e leite.

“Era o seu comer parco e vil, usando as mais das vezes de […] canjica, guisado especial de São Paulo […]. É manjar tão puro, e simples que, além de água em que se coze, nem sal se lhe mistura. Finalmente é sustento próprio dos pobres, pois só a pobreza dos índios e a falta do sal por aquelas partes podiam ser os inventores de tão saboroso manjar”, descreve Manoel da Fonseca, em “Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil (1752) “. E, já modificado quase 100 anos depois, na descrição de Jean-Baptiste Debret, em seu “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816-1839)”: “Chama-se canjica uma sopa feita com uma espécie de milho branco, fervido no leite ou simplesmente na água com açúcar à qual, por requinte, acrescenta-se algumas gemas.”

Processamentos

Destes séculos para cá, também as formas de processamento do milho se ampliaram, dos pilões indígenas ao monjolo movido a água de rio, incluindo mais tarde os moinhos feitos de pedra. Com tipos de processamento que Incorporavam, ou não, etapas de fermentação, de cozimentos (torras) e de trituração, gerando resultados muito variados de texturas, gramaturas, além de sabores.

Por toda essa importância histórica e presença constante no nosso prato, os meses de junho e julho precisavam de uma programação especial sobre o milho aqui no blog. Falar de milho é falar de fartura, de muitas possibilidades de alimentos. Da espiga verde – que, raladas, tomam forma de pamonha, curau (canjica) – aos grãos secos reidratados – que geram farinhas e fubá – até os grãos secos – canjica (mugunzá), quirera e flocão -, multiplicam-se os subprodutos que ganham nomes variados de norte a sul do país, bem como as comidas feitas a partir deles.

Para te contar mais sobre as origens, modos de fazer, produção e histórias desses tipos variados de processamento do milho, vou postar aqui nos próximos dias tudo sobre os principais subprodutos do milho. Toda semana vou te contar mais sobre como surgiram tantas possibilidades a partir de um único grão, combinado? Te espero por aqui! 😉 

Fontes:

BASSO. Rafaela. A cultura alimentar paulista – Uma civilização do milho? (1650-1750). São Paulo: 1. Edição, Editora Alameda, 2014

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816-1839). t. II, vol. III, São Paulo: Martins Editora, 1940.

DÓRIA, Carlos Alberto; BASTOS, Marcelo Corrêa. A culinária caipira da Paulistânia – a história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas, 2018

SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne-seca – Um tripé culinário no Brasil Colonial. São Paulo: 3. Edição, Editora Senac, 2014

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