É nas regiões Sul e no Sudeste que atualmente estão concentradas as grandes áreas produtoras de arroz branco do país, com o cultivo em terrenos alagados, mais ou menos como são as produções do continente asiático, de onde originalmente surgiu este cereal. Por isso causa curiosidade falar do arroz vermelho, variedade que conseguiu se adaptar e se propagar em áreas semiáridas, com produção concentrada hoje no sertão nordestino, uma das regiões mais secas do país.
O arroz-vermelho é variedade que adquiriu características próprias em solo brasileiro desde a sua introdução a partir do século 16, por colonizadores portugueses. E, por características próprias, me refiro tanto aos aspectos biológicos quanto aos sociais e culturais. Os muitos nomes usados para se referir a este tipo de arroz miúdo, quebradiço e de cor avermelhada, explicam sua história pregressa.
Arroz-de-Veneza é um deles. Conta muito sobre a relação comercial estabelecida entre Portugal e a Itália, a partir do século 13, quando a cidade de Veneza era um importante porto para negociação, troca e contato entre mercadores de todo o mundo. Um local de encontro de produtos do Ocidente com o Oriente. De lá, este arroz foi disseminado para vários países da Europa e, em Portugal, particularmente nos Açores, lugar em que mercadores mantinham contratos com a Coroa para cultivo de plantas variadas especialmente na colônia brasileira.
Depois de entrar pelo país pela capitania de Ilhéus (atual Bahia) e ser plantado na hoje cidade de Valença/BA, a planta foi cultivada em larga escala na capitania do Maranhão e Grão-Pará. No livro “O arroz-vermelho cultivado no Brasil” (2004), o autor José Almeida Pereira, engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Meio-Norte, destaca registro importante sobre a introdução desse cereal no Brasil. Em relatório de 1919, o então secretário da Fazenda do Maranhão, José Carneiro de Freitas, mencionou: “…Esta zona foi a primeira onde se fez o cultivo do arroz, trazido ao Brasil pelos Ilhéus dos Açores. Daqui estendeu-se aos demais lugares do País. O arroz semeado até o ano de 1766 era o arroz-da-terra, de cor vermelha, conhecido também pelo nome de arroz-de-Veneza…”.
Ah e a explicação para este outro nome, arroz-da-terra: diferentemente dos arrozes cultivados em terras alagadas, como já foi dito, o arroz-vermelho se adaptou para crescer e se desenvolver na terra firme.
Área produtiva
Já com dois séculos de permanência nos arados, tornou-se produto importante para a subsistência, mas considerado comida cotidiana, que estava no prato dos colonos imigrantes mais pobres e dos escravos. Foi até citado no livro “O Mulato” (1881), de Aluisio Azevedo, ao retratar as ruas de São Luís do Maranhão: “Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: ‘Arroz-de-Veneza! Mangas! Macajubas!’ “
O arroz branco polido era consumido pela elite e vinha da Europa. Por isso que, a partir da década de 1750, quando o cultivo de outra variedade, o arroz-branco-da-Carolina, passou a ser estimulado na região do Maranhão, Pará e Amapá, com as produções direcionadas sempre para as exportações para Portugal, é bom lembrar.
Mas os produtores não aceitaram a indicação de substituição no cultivo desta outra variedade. “O então governador Joaquim de Melo e Póvoas determinou, em 29 de novembro de 1772 (…) anunciou a proibição do cultivo de qualquer outro arroz que não fosse o arroz-branco-da-Carolina”, indica Pereira no livro. A pena a quem se opusesse à medida? Cadeia e pagamento de multa para homens livres (europeus brancos), e surras e uso de calceta (argola colocada no tornozelo e que se une à cintura por uma corrente de ferro), para escravos negros e indígenas.
A medida perdurou por 120 anos e pode explicar o porquê de os cultivos de arroz vermelho terem rareado no Maranhão e Pará, e migrado para outras regiões, onde não havia a restrição de produção. Nessa dispersão e com o passar dos séculos, a planta foi ganhando características únicas com grande diversidade genética e adaptações biológicas.
A intersecção entre os estados da Paraíba, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte concentra hoje a maior área plantada desse arroz – muito embora não haja estatísticas precisas desta produção. A Paraíba é estado com maior concentração, especialmente lá na bacia hidrográfica do Vale do Rio Piancó, seguido pelas áreas plantadas na bacia do Vale do Rio do Peixe, no mesmo estado. Fora dessa área ao sertão nordestino, também há manchas de produção na Chapada Diamantina, na Bahia. Sempre produções pequenas, voltadas para o consumo interno, e que pouco viaja para outros estados do país.
Preparo
“Adquirido na casca, é despolpado no pilão de madeira pelas sulas que cantam e se alternam, da mesma maneira como fazem pisando o milho ou o café torrado em casa”, registra Ana Rita Dantas Suassuna em seu livro “Gastronomia sertaneja – Receitas que contam histórias” (2010). Depois de descascado, o arroz-vermelho fatalmente se quebra, daí ser encontrado mais comumente com grãos pouco íntegros.
“É um ingrediente delicado. Precisa de cuidado para catar, limpar, mexer e cozinhar”, confirma Rodrigo Levino, do restaurante Jesuíno Brilhante, de São Paulo. O arroz-vermelho que abastece a casa chega aqui de caminhão juntamente com 90% dos ingredientes que abastecem a cozinha, vindos diretamente de Caicó/RN, cidade natal da família. Os fornecedores do restaurante são produtores da cidade, das vizinhas Timbaúba dos Batistas e Ouro Branco, ou ainda de alguma outra fronteiriça com a Paraíba. “Recebemos ele aqui com o grão mais íntegro. Se acha também aqui no Pari, no Brás, na zona cerealista, mas é mais quebrado do que o que gente consegue trazer de Caicó.”
Por ter baixo teor de amilose (tipo de amido do arroz), é um arroz que, após cozido, gera grãos pegajosos. Ana Rita, em seu “Gastronomia Sertaneja”, descreve: “É sempre cremoso (sem espapaçar) e temperado. Leite, nata, manteiga, coentro, cebola, tomate, cebolinha-verde, alho, caldos são temperos usuais.”
No Jesuíno, o arroz de leite está no cardápio, junto do bolinho de arroz vermelho. Para primeira receita, Rodrigo explica: os grãos catados e lavados precisam ficar alguns minutos de molho na água fria. Depois são cozidos em outra água. A segunda parte do cozimento é feita com leite e depois é que se adiciona a nata fresca. O queijo de coalho entra nos minutos finais, para ficar bem amolecido dentro do arroz.
Fontes:
PEREIRA, José Almeida. O Arroz-vermelho cultivado no Brasil. Teresina: Embrapa Meio-Norte, 2014
SUASSUNA, Ana Rita Dantas. Gastronomia sertaneja: receitas que contam histórias. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2010