Sementespinhão

Das memórias mais vivas que tenho de comida na infância está lá a minha avó Anita tirando o vapor da panela de pressão para, na sequência, despejar uma porção enorme de pinhões em uma bacia. Depois a gente ia para o fundo da casa dela, aqui em São Paulo, onde tinha um quintal cheio de árvores, laranjeira e amoreira. No banco de concreto cheio de caquinhos vermelhos, a gente se sentava e passava um tempão tirando a casca dura dos pinhões e comendo, e comendo. A minha avó invariavelmente estava de avental, grampo nos cabelos curtos, óculos de aro de acrílico bege e cheia de risadas para dar. Nem sei quanto tempo a gente passava ali, ela, eu, minha irmã e primos. Lembro que depois as minhas unhas ficavam todas tingidas de marrom, vestígios da casca do pinhão e também de que a tarde tinha sido bem boa.

Quem mora no Sudeste ou Sul do país deve ter lembrança de infância parecida com a minha. A árvore do pinhão, a araucária ou pinheiro brasileiro (Araucaria angustifólia), é espécie nativa que se espalha especialmente pelo Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e com participações especiais no sul de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. É árvore que se destaca na multidão verde: o tronco alongado, com mais de 20 metros de altura, desponta em galhos curvados para o céu, com tufos de folhas pequenas. É na ponta desses galhos que nascem as estruturas reprodutivas da planta: a pinha (feminino) e o estróbilo (masculino). Após a polinização, a pinha desenvolve as sementes, os pinhões. E quando a pinha está madura, cai no chão e esparrama as dezenas de sementes pela floresta.

O uso da araucária como madeira de corte e também como fonte para extração de resina (que origina verniz, por exemplo) fez esta árvore entrar para a lista do Ibama das espécies ameaçadas de extinção da Mata Atlântica do sul do país, em 2001. É por isso que agora também seu período reprodutivo é protegido. Assim como vários peixes, a araucária também tem um período de defeso. A safra começa em abril mas só a partir de março, depois que algumas sementes já se dispersaram e também já serviram de alimento para gralhas, cutias e roedores, é que é permitida a coleta para consumo humano.


E a tarefa de retirar as pinhas do pé é serviço para corajosos. Pequenos agricultores já desenvolveram a técnica de subir a araucária com botas adaptadas com ganchos nas laterais internas. Assim, presos ao tronco, é possível chegar lá no topo e cutucar com vara as pinhas que estão no ponto certo de maturação.

Uma forma bem tradicional de comer os pinhões recém-colhidos é “sapecá-los” na brasa feita dos galhos secos da araucária e comer na sequência. A semente cozida tem textura macia e gosto amadeirado. O mercado deste produto tem aumentado e já é possível encontrá-lo à venda nas versões in natura, cozido, cozido e já descascado e até cozido e processado, transformado em farinha grossa. Com o pinhão cozido e macerado é possível fazer paçoca de pinhão (com a semente e carnes variadas). Também tem o entrevero, comida de sustança, um refogadão também de carnes e com os pinhões picados. Nas várias festas do Pinhão espalhadas pelo Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul têm aparecido também umas receitas novidadeiras como rocambole, bombom, pudim e até licor da semente.

Com a preservação da araucária, muitos pequenos agricultores têm aproveitado para fazer o manejo sustentável da árvore e, assim, ampliado suas coletas das sementes. A maioria está organizada em cooperativas que já despacham toneladas do produto para o mercado local e nacional. Mas ainda há muito que se expandir em estrutura comercial e pesquisa científica. Bom, mas enquanto a cadeia produtiva se fortalece, a gente aproveita.

 

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4 Comentários

  1. Que lembrança linda da infância! Ainda mais associada à figura de sua avó…
    O pinhão, realmente, tem muitas aplicações na culinária e nem é preciso “sofrer” tanto para tirar a casca dele; é fácil encontrá-lo já descascado em embalagens fechadas a vácuo, né?
    Graças ao seu texto me deu vontade de fazer uma farofa caprichada de pinhão.

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