O ingrediente deste post é, na verdade, um preparado e, como todo preparado, especialmente os que servem para comer, é uma criação com autoria. Assim como o queijo salitre que eu escrevi há tempos (lembra?), as barras de chocolates produzidas na Ilha do Combu (PA) também têm uma assinatura: a de Dona Nena. Paraense pequenina, de 49 anos e de sorriso fácil, ela conseguiu um feito e tanto: resgatou uma receita de chocolate que a comunidade da ilha sempre fez, mas que há anos ninguém mais preparava em casa. “Era receita de família. Não era vendida, só dada aos amigos”, conta. Pois então ela estudou, perguntou para os parentes da “velha guarda” e hoje consegue produzir uma barra de chocolate maciço, rústico, que é o puro sabor do cacau da região.
Na foto aí da abertura do post dá para ver o resultado do trabalho da Nena: um tijolinho de 100g de cacau 100% que ela embala com todo cuidado na própria folha grande do cacaueiro. Nem daria para chamar de chocolate, afinal, o que Nena oferece é a massa de cacau por inteiro, sem nenhuma mistura a mais (açúcar ou gordura, por exemplo). É o suprassumo do cacau. Se você nunca comeu, talvez não reconheça como cacau/chocolate, mas, olha, é uma surpresa daquelas colocar um teco dessa barra na boca. Não é à toa que o produto é um dos campeões de vendas desta produtora artesanal que bota banca toda quarta-feira e aos sábados, a cada 15 dias, lá na Feira do Produtor Orgânico, em Belém (PA). Lá oferece a barra e quitutes feitos com ela, como brigadeiro, chocolate pastoso, cacau em pó ou a versão da barra quebradinha; isso além do açaí, fruto da pupunha e cupuaçu – tudo extraído da sua pequena propriedade no Combu.
A ideia de resgatar a receita de cacau surgiu por uma necessidade. Nena precisava achar uma alternativa para aumentar a renda já que os negócios com biojoias (bijuterias de sementes) não prosperava. Daí percebeu que poderia conseguir mais lucro se beneficiasse as sementes de cacau que ela apenas vendia. A partir de 2006, fez os primeiros testes com a receita resgatada, a mesma que faz hoje.
Em seu quintal, Nena tem tipo de cacaueiro comumente encontrado na Ilha do Combu e que foi identificado por técnicos da Emater e da Ceplac como o do grupo Forastero, cujas variedades são consideradas verdadeiramente nativas da Amazônia. Os frutos são grandes com casca de cor que vai do amarelo ao laranja; já as sementes são de tom bem escuro de marrom. São duas safras por ano: de dezembro a fevereiro, e de julho a agosto. Nestes períodos, Nena e a família quebram os frutos e colhem as sementes. Depois acomodam em basquetes, tipos de sacos plásticos grandes nos quais as sementes irão fermentar por dois a três dias. A próxima etapa é forrar o chão do quintal com esteiras de guarimã para jogar as sementes por cima. A ideia é que elas sequem por três a quatro dias. Para saber se estão no ponto, Nena dá uma mordida nas sementes secas. Nessa etapa, são separadas as sementes que serão armazenadas para o restante no ano.
A torra das sementes é bastante artesanal. Nada de forno especial, apenas um fogão doméstico, comum, que a Nena fica de olho para acertar o ponto da torra que gosta. Depois, é preciso descascar as sementes e, dá-lhe mais uma etapa de trabalho braçal: moê-las. Antigamente os pais usavam um pilão grande de madeira para macerar as sementes do cacau. Ela adaptou o processo usando um moedor, destes de carne. A cada manivelada, uma pasta escura vai surgindo, caindo na bacia. A massa de cacau é densa, e é apenas com ela que a cozinheira recheia as folhas de cacaueiro, num formato que lembra o de algumas pamonhas de milho. No total, ela produz entre 15 a 18 kg de massa toda a semana.
Foi uma sobrinha de Nena que apresentou a iguaria para o chef Thiago Castanho, que conduz os restaurantes Remanso do Bosque e Remanso do Peixe, junto de seu irmão Felipe. Ele virou como um embaixador do produto, levando-o para todo canto do país – Apresentou inclusive para o Alex Atala – e também para fora dele. Quando estive em Belém, provei sua sobremesa com o cacau de Nena (isso ainda sem saber da história dela). É de uma intensidade tremenda, e faz pensar seriamente que o que a gente entende por cacau/ chocolate é muito distante da fonte, o que dá até um aperto no peito. Uma pena.
Mas a Nena, o Thiago e a Antonia, paraense apaixonada pela sua terra, que pesquisa ingredientes e que representa comercialmente a Nena, não deixam a gente perder a esperança. Espero que algum dia você, que me lê agora, também tenha o privilégio de comer este produto que é a cara da Amazônia.
Serviço:
Barrinha de 100g – R$ 6,50
Vendas com Antonia Padvaiskas: toni.ginger@gmail.com
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Pude sentir, como você disse, quão distantes estamos do produto em sua pureza ao comermos uma barra de chocolate comercializada normalmente no mercado.E compartilho do seu aperto no peito. É mais uma preciosidade da Amazônia que a gente conhece pelo seu texto…