Ufa! Finalmente publico hoje a reportagem de dezembro com o último texto da parceria com a Revista Menu em 2015: folhas usadas para embalar comidas.
A incursão por livros e entrevistas para essa matéria foi bem curiosa. Fiquei pensando em quantas outras tantas folhas ficaram de fora da lista que reuni ou porque deixaram de ser usadas ou nunca foram estudadas… Muito, muito trabalho de pesquisa ainda pela frente!
Por isso que em 2016 tem mais parceria com a Menu para uma nova leva de reportagens do Sacola.
Aguardem e confiem! 😉
Ah, abaixo a íntegra da matéria e, aqui neste link, a mesma diagramada, tal qual saiu na edição impressa.
Boa leitura!
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Embalagens naturais
Por Rachel Bonino
Como alimento, as folhas sempre fizeram parte do repertório alimentar do brasileiro. Mas uma parte delas foge das características previstas para um ingrediente. No lugar de formarem a comida no prato, essas folhas fazem as vezes do próprio prato, de panela, de assadeira – de suporte, enfim, para as preparações. Pela flexibilidade e resistência, folhas como a da bananeira, palha do milho, do caetê e outras tantas são embalagens naturais usadas ainda hoje para assar, cozer, conservar, manter a umidade e proteger a comida do fogo.
Umas das primeiras comidas registradas por cronistas e viajantes que passaram pelo Brasil a partir da colonização foram as moquecas “sem caldo ou molho, secas, envoltas em folhas de coqueiro ou de bananeira, e assadas em fogo lento ou no borralho, têm o nome particular de moqueca enfolhada”, conta Câmara Cascudo em seu livro História da Alimentação do Brasil (1967). “Ao assado envolvido em folhas como os índios faziam com o peixe chamavam pokeka, de que se fez moqueca, corruptela de i-mô-qué, ou pô-qué, fazer embrulho, feito embrulho, envolvido; peixe assado entre folhas que o envolvem, dentro das cinzas”, registra Teodoro Sampaio, no livro O Tupi na Geographia Nacional (1901). Em seu Casa Grande & Senzala (1933), Giberto Freyre faz graça: “Moqueca é o peixe assado no rescaldo, que vem todo embrulhado em folha de bananeira – espécie de bebezinho envolto no seu cueiro. ”
Embora as menções mais frequentes para esse prato sejam com o uso da folha de bananeira, antes da introdução da planta no país, a partir da expansão portuguesa, a tecnologia indígena empregava outras folhas em comidas que iam ou para moquém (estrutura suspensa sobre o fogo) ou eram colocadas no borralho (em contato direto com as cinzas). As citações indicam nomes genéricos como palmas, palmeiras, coqueiros. Ainda em Casa Grande & Senzala, Freyre cita mais especificamente algumas outras folhas de origem brasileira, além de reforçar a forte ligação do africano com a folha do pé de banana: “A folha de bananeira-de-São-Tomé, de uso frequente no Nordeste para envolver produtos de coco, de mandioca, de arroz e de milho, será talvez efeito de intrusão africana; contágio do complexo negro da bananeira. É certo que não faltava aos indígenas a bananeira caauaçu ou pacova-sororoca; mas duvidoso que entre eles o complexo da bananeira tivesse atingido o mesmo desenvolvimento que entre os africanos. Estes davam à banana e à folha de bananeira larga aplicação. ”
Espalhada pela Mata Atlântica, outra folha nativa empregada por indígenas e que até hoje tem seu uso aplicado na cozinha é o caeté. Larga e comprida, agrupada em touceiras, essa folha tem textura mais fina que a da bananeira e, por isso, é mais maleável. Tradição de Paraibuna (SP), as pamonhas embaladas com caetés fazem parte das festividades locais do Carnaval e de Santo Antônio Maria Helena Barretos da Silva Santos, proprietária do restaurante Rancho do Milho, localizado na cidade, conta que as pamonhas embaladas no caetê são atração das festas, mas pouco chamam a atenção dos visitantes de fora que vão ao seu empreendimento. “Só o povo de Paraibuna é que come a pamonha no caetê. O pessoal de outras cidades, como São Paulo, tem receio da folha, parece. Talvez por ela ser pega no brejo, no mato”, diz.
A cozinheira conta que as folhas precisam ser lavadas uma a uma com esponja e que, ao contrário das da bananeira, não precisam ser passadas na boca do fogão ou na água fervente para amolecer, porque perdem muito a estrutura. “Recorto a ponta do caule, encaixo umas duas folhas, faço um copinho, encho com a massa de milho e amarro com uma palha” João Rural, pesquisador das tradições caipiras paulistas, contou em seu livro No fundo do tacho (2013) que caetés e helicônias (de origem amazônica e também chamadas de bananeiras-ornamental) eram a mais empregadas em moquecas indígenas, pamonhas e demais preparos da região sudeste antes da proliferação da bananeira pelo território nacional.
Pelos sertões do país, fora do litoral, outra embalagem imprescindível na vida de indígenas, tropeiros e bandeirantes foi a palha do milho. Esse invólucro acomodou a maioria dos produtos feitos a partir do próprio milho e carregados no lombo do cavalo nas monções pelo interior do país, realizadas a partir do século 18. Estudiosa das histórias do Goiás Antigo, Telma Lopes Machado, usa a cozinha da sua Fazenda Babilônia, construída em Pirenópolis (GO) no mesmo período, para reproduzir receitas antigas, como o pau-a-pique (pasta de mandioca assada na folha de bananeira) e a matula de galinha (pasta dessa carne temperada, com farinha de milho e envolta na palha).
A palha do milho tinha dupla função, segundo relatos de parentes de Telma e pessoas da região: “A seca era usada para conservar a comida transportada; e a palha verde, para cozinhar, assim como a folha da bananeira”, conta a cozinheira. O paiol da fazenda foi conservado para guardar a palha do milho colhido na propriedade e que abastece a cozinha responsável pelo café da manhã interiorano servido aos visitantes do lugar, tombado como Patrimônio Nacional.
A matula era o nome dessa comida transportada e envolta na palha do milho, e que tempos depois teve o invólucro substituído. No livro Os parceiros do Rio Bonito (1975), Antonio Candido mostra que o jeito de transportar comida na década de 1940 já não usava mais a palha: “Partindo para a roça, o trabalhador leva, numa panelinha de mais ou menos um litro de capacidade, com a colher amarrada sobre a tampa e envolta num embornal de algodão, a comida para almoço e merenda.”
Ainda que essas funcionalidades das embalagens naturais já tenham sido supridas atualmente por um arsenal de produtos industrializados, como os papéis alumínio, manteiga, filme e o saco plástico, cozinheiros são unânimes em atestar uma característica que só elas têm: a capacidade de transferir um sabor a mais aos pratos. No dia em que precisou substituir a folha de bananeira, que não estava à mão, pelo papel alumínio, a cozinheira Angélica Moreira, do restaurante Ajeum da Diáspora, em Salvador (BA), percebeu a diferença no paladar: o abunã (pasta de feijão fradinho e mariscos) ficou estranho. “A folha de bananeira passa um sabor diferente, fica mais gostoso. Acho que é porque a banana é uma fruta bem gostosa, né? ”, associa.
Além do uso mais frequente das folhas de bananeira e da palha do milho, o repertório de comidas brasileiras também incluiu outras ou de aplicação muito específica, ou que já caíram no esquecimento. Em seu Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1831), o viajante francês Jean-Baptiste Debret, cita que as baianas vendedoras de comida de rua do Rio de Janeiro, no século 19, ofereciam “ataçaça [ou acaçá], creme de arroz-doce vendido frio dentro de um canudo de folha de bananeira, e bolos de canjica, pasta açucarada feita com farinha de milho e leite e vendida em folhas de mamoeiro” – esta última sem uso atualmente.
Já as folhas da mamona, curiosamente parecidas com as do mamoeiro, são usadas hoje na Bahia nos terreiros em dias especiais, como na festa de Olubajé. Na ocasião, as comidasoferecidas às divindades são dispostas no chão e cada participante da festa usa a folha da mamona como prato para acomodar porções de cada quitute pinçado com os dedos.
No litoral paulista, o chef Eudes Assis, do Taioba Gastronomia, usa as folhas para fins variados, do preparo de ingredientes à decoração das bandejas de petiscos. Em seu restaurante em São Sebastião (SP) ele ainda utiliza a taioba como folha que embala peixes, cuscuzes e outros pratos. A diferença é que, ao contrário das demais folhas, a taioba pode ser comida junto da comida que envolveu. Confira essas e outras receitas que o chef fez com as folhas mais empregadas na cozinha brasileira no fim dessa edição.
Detalhes sobre cada folha:
Milho
A palha desse cereal é uma das embalagens naturais mais antigas do país. Usada por indígenas e disseminadas por tropeiros e bandeirantes, é multiuso por oferecer duas versões de invólucro – a palha seca e a verde. Sua aplicação mais usual é na pamonha de milho adoçada ou salgada, com a palha verde encaixada ou costurada à máquina.
Bananeira
Era usada pelos grupos indígenas mas com aplicação mais habitual entre os africanos, também habituados a ela em seu continente de origem. Por ser folha grande e abundante tem lista extensa de receitas nas cozinhas interiorana e caiçara. Precisa ser colocada em água fervente ou passada na boca do fogão para ficar mais maleável e não rasgar.
Caetê
Mais fina que a folha da bananeira, a folha de caeté usada por muitas tribos indígenas ainda hoje. Incluída na lista de palmas usadas desde a colonização portuguesa, é mais apreciada no interior porque, segunda João Rural, em seu livro No tacho de cobre (2013) “caipira nenhum suporta o sabor da folha de bananeira”.
Helicônia
Também chamada de bananeira-ornamental, essa planta é trabalhada na cozinha muito regionalmente, mais comum entre tribos indígenas. Assim como o caeté, pode ter tido o emprego limitado dada à oferta mais frequente de folhas de bananeiras.
Mamona
Seu emprego na cozinha é restrito, mais importante na cultura afro-brasileira: serve de prato nas festas de Olubajé, celebração anual ao orixá Obaluaê, sincretizado como São Roque. As comidas ofertadas são colocadas em esteiras no chão e consumida com as mãos pelos participantes. Não há registro de uso da folha para cozer ou assar alimentos.
Mamoeiro
Citada pelo Jean-Baptiste Debret, em seu Viagem pitoresca e histórica pelo Brasil (1831), a folha de mamoeiro usada como opção para embalar comidas pode ter caído em desuso ou então ter sido confundida pelo autor. Os registros de venda de comida de rua no período mencionado atestam apenas o uso de folhas de bananeiras e de milho no Rio de Janeiro do século 19.
Taioba
Gabriel Soares de Sousa, em 1587, já havia registrado, em seu livro Tratado descritivo do Brasil, o gosto dos nativos do país pela taioba: “comem-se estas folhas cozidas com peixe em lugar dos espinafres”. Pelo registro do colonizador português, o mais comum era o consumo das folhas”cozidas na água e sal.”
Revista Menu – Edição dezembro/2015
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