“Eles não comem senão d’outra coisa a não ser dum inhame que brota da terra”. Pero Vaz de Caminha, em sua primeira carta ao rei de Portugal em que reportava as novidades do Novo Mundo, já tinha observado a adoração que os indígenas nutriam pela mandioca. Do descobrimento para cá, o cultivo e manejo da nativa mandioca e suas raízes e folhas pouco foram alterados. A essência ainda existe na maioria dos processos de produção de farinha em casas artesanais ou mesmo na forma de plantar e colher a raiz.
Mandioca, macaxeira ou aipim – escolha o nome conforme sua terra natal – é a “rainha do Brasil”, como bem cunhou Câmara Cascudo, estudioso e folclorista – muito embora hoje o maior produtor mundial seja a Nigéria (o Brasil fica em segundo lugar). O tubérculo é generoso: não só possui nomes diversos, como também oferece milhares de alternativas de alimentos. Da raiz cria-se uma infinidade de produtos que justifica a grandiosidade desta planta que é o verdadeiro pão do Brasil. Comida que mata a fome e dá energia.
Em resumo, é assim: da raiz espremida gera-se um caldo chamado manicuera de onde se obtém o tucupi (usado no tacacá), a tiquira (tipo de fermentado, de pinga de mandioca) e o polvilho doce ou azedo (fécula da mandioca, que, por sua vez, gera as tapiocas, sagus, beijus). Da massa da raiz espremida (chamada de carimã ou massa puba quando a mandioca foi fermentada) é que se faz a farinha; já das folhas, extrai-se a maniva, massa verde das folhas picadas e usada na maniçoba, a “feijoada” do paraense.
Entre as variedades de mandiocas cultivadas no Brasil existe uma característica que as diferenciam em dois grupos: as que são bravas ou amargas, e as mansas ou doces. A primeira possui elevado nível de ácido cianídrico, que é altamente tóxico e pode matar por asfixia. Por isso nem pense em comer a raiz brava fresca, in natura, isso só é possível com a variedade mansa. Por processos artesanais ou industriais é possível diminuir os níveis deste ácido na brava, muito comum no norte do país, por isso ela é muito usada na produção de farinha e de fécula. Hoje a ciência explica o fato, mas há milhares de anos, a variedade fez o índio da Amazônia desenvolver as técnicas para extração do ácido, usadas até hoje, como nos conhecidos sete dias de cozimento da maniva para produção da maniçoba.
Mas falou em mandioca, falou em farinha. Sabia que 80% da macaxeira cultivada no Brasil viram farinha? Pois é. Enquanto que o brasileiro consome 1,7 kg/ano do tubérculo, o consumo de farinha é de 5,3 kg/ano por pessoa (no norte do país, este número bate os 23,5 kg!). É por isso que cada região brasileira possui a sua própria farinha, com características que pertencem só àquele lugar, o que a tornam um marcador cultural importantíssimo. São farinhas grossas ou finas, mais cruas ou torradas, e fermentadas ou secas que são comidas puras, amolecidas em caldo de peixe, que viram pirão, ou acompanham o churrasco, a polpa de açaí ou então que viram a nossa querida farofa.
Mas lembre-se que a mandioca ainda oferece outros tantos subprodutos e com nomes que podem confundir a cabeça. Farinha puba é a mesma coisa que farinha d’água. No Pará, a tapioca é a farinha dura, a farinha que parece um isoporzinho e também o disquinho de fécula hidratada que recebe recheios – como também tem no nordeste inteiro. Em outros tantos lugares a goma também é tapioca, e fécula é sinônimo de polvilho. Confuso, né?
Foi pra trazer um pouco de clareza e também as curiosidades sobre todas as vertentes que envolvem a mandioca que surgiu a ideia de montar um especial sobre o assunto. Para completar, chamei a querida jornalista e blogueira Larissa Januário, do blog Sem Medida, para complementar os post com uma receita supimpa com cada um dos subprodutos explorados. Também contei com a incrível colaboração da fotógrafa Mayra Galha, que fez as imagens de produção de farinha d´água em Altamira (PA).
Para as próximas semanas, teremos um mundaréu de farinhas, tiquira, polvilhos, tapioca, tucupi, maniva, e por aí vai. Não deixe de acompanhar!
Referências:
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008 – 2009. Aquisição Alimentar Domiciliar Per capita. Brasil e Grandes Regiões.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Global, 2004.
LODY, Raul (Org.). Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia. São Paulo: Editora Senac, 2013.
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Linda esta parceria! E que texto bonito, Raca! Parabéns!
Obrigada, querida! Aguarde que ainda vem muitas coisas legais por aí! 😉
bj,
Rachel
muito bom raquel.
Que bom que gostou, Aurora!
bj, Rachel