Depois que é retirada da terra, a mandioca que virará farinha passa por esses processos que engenhosamente foram criados há centenas de anos e sobre os quais pouco sabemos da origem. São até dez etapas de processamento para que a raiz transforme-se em grãos. Técnicas de manejo indígena milenares. O encanto é saber que apesar da fórmula ser mais do que conhecida, em cada canto do país, variações aqui e ali resultam em farinhas tão distintas quanto saborosas.
A produção e consumo da farinha do tipo seca são mais comuns nas regiões centro, sudeste e sul do país, mas existem também em outros locais. Chama-se seca porque a mandioca não passa por etapa de fermentação, como ocorre na farinha d´água ou puba (assunto do próximo post!). Para a obter a versão seca, a macaxeira tem contato com a água apenas na etapa em que é lavada (e em algum casos, nem é lavada), isso depois que sai da roça e vai para as casas de farinha, ou de engenhos, como chamam os sulistas.
Na etapa seguinte, ela é ralada e a massa que se cria – também chamada de carimã – é colocada em cestos de palhas (parecidos, no formato, com pneus de carro), chamados de tipitis redondos, ou então acomodada em sacos de ráfia, e colocados em caixas de madeira. Empilhados, os tipitis vão para a prensa para que a água da mandioca seja retirada. Mas não muito: uma das característica da farinha catarinense tradicional é o aspecto um pouco polvilhado devido a não retirada total do amido. Aliás, é da água salobra e esbranquiçada que sai da prensagem que se extrai o polvilho e o tucupi (aguenta que vamos falar deles no futuro!).
Depois que está bem menos úmida, a massa é peneirada e levada para secar em tachos, sob o calor do forno à lenha. Farinhas menos ou mais torradas são vendidas com os nomes de crua ou seca/torrada, respectivamente. Todos estes processos em muitos lugares ainda são completamente artesanais, executados pelos homens e mulheres que plantaram sua própria mandioca. E em outros casos, há casas em que parte das etapas já estão mecanizadas de alguma forma, com equipamentos movidos à eletricidade ou diesel.
Embora possa ser mais granulada, o que se costuma ver entre as secas é uma farinha mais fina, com grão diminutos, como a encontrada em Santa Catarina. A história explica: uma tentativa de semelhança com a farinha de trigo. A partir do século XVIII, imigrantes europeus buscavam uma alternativa de farinha já que o cultivo de trigo em solo brasileiro se mostrou pouco produtivo. Assim, o hábito de farinha finíssima embora tenha frustrado no início (farinha de mandioca não contém glúten, assim, não consegue ser um substituto direto do trigo) logo foi incorporado. Como pensar em um barreado desacompanhado da delicadeza de uma farinha fina? Ou da farinha fina que acompanha o churrasco?
Em Santa Catarina, o maquinário tradicional para ralagem e prensagem da mandioca é bem característico, com peças de madeira maciça entalhada e com espaço para tração animal. Tudo com muita cara de moinho até. Já no Recôncavo Baiano, mais especificamente no Vale da Copioba, o maquinário é diferente, com equipamentos em ferro e casa de farinha mais abertas, com menos paredes, talvez por conta do calorão. Esta região é produtora de farinha fininha e amarelada chamada também de copioba. As histórias sobre sua origem são imprecisas. O curioso é que não é feita de uma variedade específica, ou passa por processo padronizado. Mas o baiano da região sabe que copioba é farinha com garantia de boa qualidade.
Ela também é uma farinha seca mas, com algumas variações de processamento: diz-se que é preciso realizar todas as etapas de produção da farinha em 24 horas, para garantir seu frescor. Nas casas de farinha, a de copioba costuma ser colorida com cúrcuma, o que confere seu tom mais dourado. Atualmente é alvo de estudo da Universidade Federal da Bahia que juntamente com Embrapa e Sindicato dos trabalhadores Rurais de Nazaré busca registro de Indicação Geográfica (IG), um reconhecimento por este tipo de fazer farinha e pela qualidade do produto.
No mesmo saco está a farinha de Cruzeiro do Sul, produzida no Vale do rio Juruá (AC) e que também está em vias de conquistar seu IG. Curioso saber que é uma farinha seca produzida na região norte do país, local que tradicionalmente produz farinha d´água. Acredita-se que a influência nordestina foi a responsável pelas características da farinha de Cruzeiro, bem fina e delicada, mas que também possui versão mais rústica.
RECEITAS:
Farinhas secas normalmente são ótimas quando umedecidas por caldo, quando viram pirões, ou são jogadas por cima de ensopados e caldo de feijão, da feijoada. A Larissa Januário, do blog Sem Medida, preparou duas receitas usando essa farinha. Clique nas fotos para conferir:
VEJA TAMBÉM:
O Instituto Maniva, organização que defende a produção justa de mandioca no país, produziu um documentário chamado Professor de farinha. Nele é possível ver como é a produção artesanal, como a de Fermínio Nascimento, agricultor de Paulo Lopes (SC). Com seu sotaque catarina inconfundível, ele explica como faz a farinha que aprendeu com o pai. Dá para ver bem o maquinário que mencionei antes. Já na segunda parte do filme, quem fala é o Seo Benê, produtor de farinha puba em Bragança (PA). Já é uma prévia para o próximo post, o de farinha d’água. Aguardem!
VEJA TAMBÉM – II:
Ah, e vale a pena conferir também as receitas com mandioca da cozinheira baiana, mas sul-matogrossense de coração, Iracema Sampaio (falecida em 2010). Neste link é possível acessar livro com muitos preparados que ela pesquisou ao longo da vida.
Referência:
LODY, Raul (Org.). Farinha de mandioca: o sabor brasileiro e as receitas da Bahia. São Paulo: Editora Senac, 2013.
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