A edição de junho da revista Menu traz matéria minha sobre as primeiras comidas vendidas nas ruas brasileiras. Retratei aquelas consumidas a partir do século 19, nos primeiros centros urbanos do país – Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Na pesquisa, contei com os apoios importantíssimos dos historiadores: Almir El-Kareh, autor do livro “A vitória da feijoada” (Editora da UFF), e também de João Luiz Máximo da Silva, autor da tese de doutorado “Alimentação de rua na cidade de São Paulo (1828 – 1900)”. Ambos me forneceram dados valiosos sobre a engrenagem que movia a produção de comida vendida nas ruas, seus principais protagonistas e também os produtos mais comuns dos tabuleiros.
Para arrematar, ainda recebi o “sim” da chef Ana Soares para o convite de reinterpretar alguns dos preparados consumidos naquela época. Quem se animar pode até fazer as receitas criadas, que estão no final da edição.
Ficou curioso? Então acesse a matéria completa clicando aqui, ó!
P.s.: Por questão de espaço, a reportagem original precisou ficar mais enxuta para a edição impressa. Mas a reproduzo aqui na íntegra para você que se interessou mais pelo tema!
Boa leitura!
——-
Comida de rua do passado
Comer na rua, em porções, com as mãos e, por vezes, sentado na calçada. A cena pode ser vista facilmente hoje em várias ruas de cidades brasileiras com a nova onda de food trucks. O que pouca gente sabe é que a mesma cena também remonta parte do cotidiano dos principais centros urbanos do país, desde a colonização.
Alternativa de alimentação e também de trabalho para os pobres, escravos e libertos, as vendas de comidas na rua constituíram um tipo de comércio que fortaleceu o abastecimento miúdo de alimentos nas cidades, especialmente até a segunda metade do século 19 quando começaram as surgir os primeiros locais para se comer fora de casa, como restaurantes, cafés e confeitarias por influência europeia. O tabuleiro das quitandeiras era preenchido então por frutas, verduras e por refeições rápidas e petiscos. Comida barata, preparada com antecedência ou feita ali, na frente do comprador.
O pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) imortalizou algumas dessas movimentações de venda de comida na rua do Rio de Janeiro da primeira metade do século 19. Na famosa prancha “Negras cozinheiras, vendedoras de angu” (reproduzida aí na abertura do post), ele retrata a estrutura montada para oferta do preparado de farinha de milho ou de mandioca, que recebia um molho de carne e miúdos. Ao lado das cozinheiras, remexendo seus caldeirões, se formava uma fila à espera de sua tigela.
As primeiras vendas de comida nas ruas se estabeleceram nos grandes centros do país por meio da exploração do trabalho dos escravos de rua, chamados de “ao ganho”: “Estes escravos, além das tarefas propriamente domésticas, como cozinhar, lavar, passar, limpar e cuidar da pessoa de seus patrões, se entregavam a trabalhos ‘produtivos’, lucrativos, que geravam a renda de sua senhora, ou seja, à produção de bordados e, especialmente, de comidas para serem vendidas na rua, por ambulantes”, conta o professor Almir El-Kareh, historiador e autor do livro “A vitória da feijoada” (Editora da UFF).
Até a segunda metade do século 19, as cidades possuíam apenas grandes depósitos atacadistas de produtos, sem espaço para receber clientes, como restaurantes e confeitarias – que surgiriam tempos depois, enfraquecendo o comércio nos tabuleiros. Cabia aos escravos ambulantes a tarefa de oferecer na rua ou de porta em porta produtos variados, entre eles comidas e bebidas. “A rua – com todos os problemas e perigos – era vista como um espaço de liberdade, com possibilidades de contatos e de ganhos. O escravo tinha que trazer uma quantia específica para seu dono e às vezes conseguia algum ganho pessoal”, diz João Luiz Máximo da Silva, historiador e autor da tese de doutorado “Alimentação de rua na cidade de São Paulo (1828 – 1900)”.
Nesse contexto, destacavam-se os escravos vindos da Costa Ocidental da África, em especial as escravas da Costa da Mina, que tinham grande tino comercial. Essa aptidão fez com que muitas fossem alocadas na venda de alimentos nas ruas em Salvador, na Bahia. “A partir de 1830, com um período de depressão do comércio de açúcar o e levante dos Malês [negros de religião muçulmana que pediam o fim da escravidão], ocorreu uma grande saída de escravos baianos vendidos para outros centros, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa migração dos Minas para outros centros urbanos exerceu uma grande influência nas atividades de venda de alimentos nas ruas de outras cidades”, explica Máximo.
Detentoras do ofício doméstico, eram as mulheres que dominavam de ponta à ponta a produção e venda de comida: no período escravagista, a liderança ficava com as senhoras brancas que coordenavam a confecção das comidas, enquanto as escravas negras preparavam e vendiam os alimentos na rua. Depois da abolição da escravidão, o ofício se tornou alternativa de sobrevivência para as escravas libertas; para as senhoras brancas, representou o fim da vida produtiva, já que o modelo impresso pela Europa para a classe burguesa e aristocrática era de mulher dependente financeiramente do marido. Exclui-se aqui a mulher branca arrimo de família, viúva e mãe solteira, que continuou a ser “produtiva”, lembra El-Kareh. Elas “concentraram suas atividades em dois importantes ramos: a locação de quartos e o fornecimento de comidas prontas (as pensões de família e as pensões de comida)”, conta. Os dois negócios que prosperaram com o crescimento do contingente de imigrantes no país.
No Rio de Janeiro, cidade com mais registros históricos sobre sua comida ambulante, os tabuleiros com alimentos e bebidas normalmente tinham horário para sair às ruas, seguindo os períodos das refeições à época: primeiramente das seis até às dez horas da manhã, depois entre duas da tarde até o começo do anoitecer, por volta das 18h30. “[…] a primeira despesa matutina da maioria dos operários consiste na compra do pão-de-ló que eles consideram substancial e bom para o peito”, observa Debret em passagem do livro “Viagem pitoresca e histórica pelo Brasil” (1931). Já em São Paulo, era mais comum que as quitandeiras estacionassem sempre nos mesmo locais, como na Rua da Quitanda – que existe até hoje com o mesmo nome, no centro da capital paulista.
Não eram só os tabuleiros equilibrado nas cabeças que identificava as vendedoras ambulantes de comida. As negras que saíam às ruas “deviam chamar a atenção e ser identificadas por seus trajes e por sua limpeza, uma espécie de marca do negócio”, destaca Almir El-Kareh, em artigo intitulado “Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização de alimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX”. Por isso, vestiam xales e turbantes coloridos e chamativos. As vindas da Bahia ainda se adornavam com batas bordadas e joias de ouro para chamar mais atenção da freguesia.
E com que tipo de comida eram preenchidos os tabuleiros das quitandeiras e doceiras? Fatiada, misturada e remexida por mãos negras, a comida ambulante tinha forte herança africana, especialmente em centros como Salvador e Rio de Janeiro, onde os contingentes de escravos foram historicamente maiores. Daí a ocorrência de muitos preparados identificados com a chamada “comida de santo” que pinçava aspectos da religiosidade com os orixás, com muito óleo de dendê e coco. No relato de época de Debret, o pintor lista as comidas trazidas pelas negras baianas ao Rio, como: pamonha, acaçá e aluá, além de acarajés e manuês (tipo de bolo de milho). A influência portuguesa aparece na confecção do pão-de-ló e sonhos. Também havia uma feijoada rala, com feijão preto e poucas carnes, como toucinho e carne-seca.
Para matar o calor, muita fruta fresca, como cajus, limas, limões doces e tocos de cana de açúcar, e bebidas refrescantes. Entre as mais comuns estava o aluá, feito a partir do arroz macerado, fermentado e depois adoçado com rapadura. Também existiam as variações feitas a partir de milho fermentado ou de cascas de abacaxi – versão até hoje difundida em cidades do Nordeste.
Já em São Paulo, a comida que circulava pelas ruas era diferente. Com contingente menor de escravos urbanos, a influência indígena e bandeirante era mais forte, segundo os escassos registros sobre a comida ambulante. A quitandeira paulistana – que ainda assim era também escrava negra ou forra – dependia dos alimentos obtidos nos arredores, muitos deles frutos do extrativismo, como os pinhões cozidos e amendoins e içás torrados. Feitos com peixes e pitus pescados em rios da região, como o Tamanduateí, as empadas e cuscuz eram pequenos, porção para comer em poucas bocadas, lembra João Máximo: “Em São Paulo, as quitandeiras não ocupavam as ruas com caldeirões, grandes barracas, etc. Preferiam pequenos tabuleiros que podiam ser montados em diferentes pontos.”
A combinação de espaço, tempo histórico, oferta de alimentos, diversos grupos etnográficos envolvidos, dentre tantos outros fatores determinaram as escolhas feitas à época para as primeiras comidas de rua do país. “Parece que eram preparados muito neutros, com pouco sabor”, observa a chef Ana Soares, diante das referências de receitas e descrições de alguns dos petiscos e refeições antigos. Disposta a valorizar a autenticidade de cada produto, Ana propõe uma releitura de alguns deles e apresenta um “novo tabuleiro” nesta edição da Menu. Quem sabe eles não poderiam voltar às ruas na cozinha de um food truck?
Revista Menu – Edição junho/2015
*Ei, você! Quer sempre saber das últimas do Sacola? Então curte a página do blog no Facebook!
oLÁ…Eu tenho um food truck de angu @ Angurmê Culinária Afro-Brasileira.
Que interessante! 😉