Você pode assistir a documentários e filmes, e ficar achando que só no México, na China, ou em outras regiões da Ásia é que se comem insetos. Olha, quero te dizer que no Brasil a gente come uma boa variedade deles, viu? Essa tradição mora em alguns cantos no país, com práticas culinárias muito enraizadas. Na reportagem do Sacola Brasileira lá na edição de setembro da Revista Menu – já nas bancas -, eu conto tudo.
Confira a matéria impressa neste link ou então leia a íntegra do texto logo aí abaixo.
Amplie seus horizontes culinários! 😉
Boa leitura.
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Insetos de comer
Sinônimo de sujeira, de falta de higiene ou, mesmo, de falta de civilidade ou finesse. Os insetos nunca foram encarados com bons olhos pela cultura ocidental, ainda mais se forem classificados como ingredientes e parte da alimentação. Ainda que vistos com repulsa, insetos em vários estágios de crescimento, da larva ao bicho em sua forma adulta, compõem parte da dieta de povos de diversos países, como na China, México, alguns africanos e no Brasil. Sim, nós também comemos insetos, e o consumo não se perdeu no passado: ainda hoje diferentes bichos complementam a alimentação de norte e sul do país graças à herança indígena.
Em Delícias do Descobrimento (2008), a autora Sheila Moura Hue, registra que no século XVI, índios do Brasil costumavam comer bicho-de-taquara, larva de uma mariposa encontrada em bambuzais. “Antes de comê-la, os índios retiravam a cabeça e os intestinos”, diz, explicando ainda que se não tiravam essas partes do animal, o bicho engolido por inteiro funcionava como alucinógeno. “Mesmo no século XIX, os viajantes, apesar do nojo inicial, acabavam se fartando com os bichos-de taquara, como [o cronista francês] Auguste de Saint-Hilaire, que provou em Minas Gerais e afirmou que tinham um sabor muito suave e lembrava ‘o creme mais delicado’”, destaca.
Depois de listar outras menções de cronistas estrangeiros sobre insetos, o folclorista Câmara Cascudo fez provocação em trecho de seu livro clássico História da Alimentação no Brasil: “Os preceitos da dieta indígena compreendiam larvas e formigas, assustando civilizados devotos de caracóis, cogumelos, queijos pútridos e carnes submetidas à prévia faisandage nauseante. O mau cheiro para uns é certain fumet para outros, dependendo das normas sibaríticas.”
Seja por necessidade (fome), pelo apreço pelo sabor ou por gerarem sensações diversas, os insetos tornam-se comida a depender dos olhos de quem o vê. A cozinheira amazonense Josefa Antônia Gonçalves de Andrade, a Dona Brazi, lembra que desde sempre sua família, de origem da tribo baré, sai mata adentro para capturar saúvas na sua cidade São Gabriel da Cachoeira (AM), a mais de 800 km da capital Manaus. Usando técnica específica, ela e os parentes ainda hoje sabem localizar o formigueiro certo para enterrar um pau fundo até sentirem uma terra mais fofa, alargar o buraco e, com a ajuda de pauzinhos mais finos, “pescar” as formigas. Vão jogando as que são fisgadas em pote com água e sal “para que se acalmem”. “Elas só não mordem na lua nova e também depois da chuva”, conta Brazi. Ela as usa para molho “vinagrete” com tomates, pimenta, pimentão, cebola, cebolinha, coentro, tudo picado e acrescido de tucupi reduzido. Serve para temperar e acompanhar qualquer tipo de prato, especialmente peixes.
Quando conheceu o ingrediente, o chef Alex Atala assumiu o papel de cronista de séculos atrás para a tarefa de descrever o gosto da saúva: “Um sabor claro de capim-santo, com outras notas que vão compondo seu frescor, como gengibre; um sabor levemente picante, um pouquinho salgado, complexo, potente: amazônico”, escreveu em texto de abertura do livro Dona Brazi – Cozinha tradicional amazônica (2013), misto de biografia e compilado de receita assinado pela jornalista Maria da Paz Trefaut. As saúvas da Dona Brazi podem ser encontradas atualmente no restaurante de Atala coroando sobremesa de abacaxi.
As mesmas saúvas quando estão em outra fase da vida também são saboreadas tanto na região norte quanto na sudeste do país. As içás ou tanajuras são fêmeas aladas que saem dos formigueiros para reproduzir. Carregam no ventre tantas ovas que se tornam bem maiores que os machos. Entre setembro e dezembro, elas saem da toca e formam revoadas. Na cidade de Silveiras (SP), localizada no Vale do Ribeira, a população, além de comê-las também tira renda extra vendendo os insetos para Ocílio Ferraz, dono do Restaurante do Ocílio. “Todos já me entregam as içás limpas, sem asas e patas”, conta. As tanajuras são fritas em gordura e complementadas com farinha de mandioca e servidas no restaurante, que virou ponto turístico para visitantes experimentarem a iguaria.
Nas farofas ou apenas torradas, as içás sempre foram tão comuns na mesa do paulista que eram oferecidas nos tabuleiros dos vendedores de comida de ruas de São Paulo na segunda metade do século XIX. “Se as quitandeiras continuavam a oferecer içás nos tabuleiros é porque ainda havia demanda, principalmente da população pobre, já que deveria ser um prato barato devido a sua facilidade de obtenção e preparo”, comenta o historiador João Maximo da Silva, autor da tese de doutorado “Alimentação de rua na cidade de São Paulo (1828-1900)”.
Como as içás que aparecem eventualmente no prato dos seus admiradores, também outros bichos complementam a refeição do cotidiano. Durante o trabalho duro das quebradeiras do coco do licuri, palmeira nativa da caatinga, é comum encontrar larvas de besouro cascudo que crescem alimentando-se da massa branca do coco. “Tem gente que come o bicho cru, vivo, ali na hora, e outros fazem farofa também”, conta Josenaide de Souza Alves, secretaria-executiva da Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina (Coopes), localizada em Capim Grosso (BA). Ali, a larva é chamada de morotó, mas pode ser gongó, no Maranhão; ou tapuru, na Amazônia. E os coquinhos variam também: além do licuri, come-se larvas que crescem nos frutos do tucumã, do babaçu, do butiá, entre outras palmeiras. As larvas que crescem dentro dos cocos têm gosto de… coco e fama de nutritivos, conta Josenaide.
No município de Soure, localizado na região do Marajó (PA), a larva é beneficiada para gerar um óleo. Ou seja, além do óleo do fruto do tucumã também existe o óleo feito a partir do bicho, também usado na cozinha. A prática é tão antiga e comum na região que já foi objeto de estudo da Embrapa e consta em publicação do órgão como mais um produto do extrativismo vegetal importante na região.
Outro alimento dos povos da floresta amazônica é o turu ou cupim-do-mar. Apesar da aparência de larva, trata-se de um molusco que habita os mangues da região do Marajó. Fino e comprido e com sabor parecido ao da ostra, é comido cru sem a cabeça e intestinos, apenas com um pouco de pimenta, ou então cozido com temperos para gerar sopa substanciosa.
Em comum, todos esses bichos tem uma característica: a de serem presenças eventuais na mesa do brasileiro. Por serem fruto do extrativismo ocasional, ou seja, não terem uma produção organizada, apenas complementam as refeições. Mas isso pode mudar: em 2013, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês) divulgou estudo que indica que a criação de insetos em escala industrial poderia ser uma importante aliada no combate à insegurança alimentar mundial. Na avaliação da instituição, insetos são altamente nutritivos, se reproduzem rapidamente e poderiam também servir de alimento para outros animais, como gado, aves e peixes. Se for preciso aumentar a produção de insetos, os brasileiros já sabem quais serão seus preferidos no cardápio dos restaurantes no futuro.
Revista Menu – Edição setembro/2015
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